sábado, 16 de outubro de 2010

Uma bela e inesquecível data....


Quem diria: um fanático por música de terreiro entrevistando o sacerdote, alabê, percussionista, organizador do acervo musical da FTU, inspirador deste humilde blog e maior especialista em música de tereiro: Mestre Obashanan, que nesta foto está a minha direita...



Dois mestres juntos: Mestre Obashanan tendo à sua direita o DJ, ex-combatente da guerra de independência de Angola, antropólogo professor da Universidade Federal de São Paulo e nas horas de licença orientador de minha monografia: Julio Moracen Naranjo, o cubano.



Saudações a todos! No dia 13 de outubro deste ano, eu e meu professor orientador estivemos nas dependências da Faculdade de Teologia Umbandista entrevistando William do Carmo Oliveira, o Mestre Obashanan. Devemos antes de mais nada dizer que essa entrevista foi deveras proveitosa e que pudemos aprender muita coisa sobre a música dos terreiros... E, de quebra, levamos para casa quase todo o catálogo da Ayom Records, que é uma gravadora que não está deixando a música dos terreiros se afastar de suas mais primitivas tradições...



Pena que a riqueza desta entrevista, as palavras de sabedoria ditas por um reconhecido lutador da causa umbandista não possam ser passadas para um papel, ou para as frias páginas de um obscuro blog. Devido a tais dificuldades, eu optei por transcriar o material gravado, a partir das linhas gerais que nele estão contidas. E o resultado desta agradabilíssima palestra, todos podem ver aqui embaixo (Em tempo: qual não foi minha surpresa ao saber que há gente na Ucrânia e no Peru lendo o que eu boto aqui! Isso me dá alguma esperança na convicção de qe fiz bem em criar este blog):

Obashanan: Então, Adriano, o que você está pretendendo fazer é pesquisar sobre a música umbandista, mas só sobre a música umbandista?

Adriano: Sim, é sobre a música umbandista, mas não só a música dos terreiros, mas também aquela que de alguma forma fale das coisas do terreiro. Como o Noriel Vilela; as músicas que estão no disco dele não são pontos de raiz, mas eu já cheguei a ver algumas delas serem utilizadas dentro dos próprios rituais do terreiro. O que pretendo fazer é o seguinte: pegar as quatro obras que eu citei e tentar demonstrar que a mensagem contida nas músicas traz consigo elementos que permitem identificar aspectos da cultura umbandista, e que por isso devem ser preservados.

Obashanan: Veja bem, eu te fiz essa pergunta porque é difícil – se não impossível – dissociarmos a música da umbanda da música dos cultos de nação. O que ficou demonstrado na montagem do acervo e também na minha vivência pessoal dentro da religião é que os terreiros, sejam de umbanda, das diferentes nações de candomblé, do catimbó-jurema, os batuques do Rio Grande do Sul, de toré, encantarias, tambor de mina ou até mesmo da santería cubana, entre outras, estão ligados entre si através da música; a música é o elemento comum entre todas essas manifestações religiosas.

Embora sua pesquisa pretenda se voltar somente à umbanda, o que você precisa perceber é que há na música vínculos muito fortes que unem a umbanda a esses segmentos religiosos. Por exemplo, a maior parte dos pontos cantados da umbanda está em português, mas o que a maioria dos umbandistas desconhece é que esses pontos muitas vezes são recriações e traduções das cantigas e dos mitos de cada nação do candomblé. E ainda há outras matrizes, você teria que pesquisar muita coisa indígena, porque o jeito de cantar dentro da umbanda não vem tanto da África, mas do indígena brasileiro. Enfim, é uma música muito abrangente...

Adriano: Mas pro fim desta minha pesquisa, que é uma monografia de conclusão do curso de História na Universidade Federal de São Paulo, o que eu estou pretendendo demonstrar é que na música umbandista – que a meu ver é um patrimônio histórico imaterial que deve ser preservado – existem elementos onde a cultura umbandista está expressa e que de certa forma serviu para criar uma linguagem comum entre as diversas escolas umbandistas. Pelo menos na literatura que até agora eu consultei para o meu trabalho, pude notar que os festivais de música umbandista, por exemplo, têm de certa forma, apesar de suas restrições, servido para que pudesse se proporcionar uma legitimidade social para a religião umbandista e também para que as diversas umbandas pudessem se reconhecer num cadinho cultural comum...

Obashanan: Então, isso que você citou é a outra ponta da corda... Por quê? Porque na verdade, eu acredito que isso é uma volta, pois sem medo de errar, eu afirmo que de 80 a 90 por cento dos ritmos brasileiros e do imaginário das canções vêm dos terreiros. E para entender melhor isso você teria que ir lá atrás, você já ouviu o J.B. de Carvalho?

Adriano: Já, já sim!

Obashanan: Ele era um cara que gravou muita coisa de música popular, mas que também pegava os pontos de terreiro e depois gravava como canções de sua autoria. E antes dele temos o Grupo Nagô, o Pixinguinha, o João da Baiana, que eram todos do terreiro da Tia Ciata. O Villa-Lobos, enfim, todo esse pessoal da antiga era de lá, e todo o imaginário das canções brasileiras de alguma forma veio dos terreiros. E no Nordeste temos a influência da Jurema, com seus ritmos indígenas; esta e outras influências contribuíram de algum jeito para a formação da música popular brasileira.

E essa “ponta da corda” de que eu estou falando começou com os festivais lá na década de 70, quando havia uma necessidade de retorno à essas raízes, mas essas raízes já existiam lá; no anos 80, muito por causa da influência da música evangélica no mercado fonográfico, essas raízes foram sendo cortadas. Hoje em dia nós quase não temos dentro da música popular alguém que faça essa ponte entre o profano e as coisas do terreiro, se reportando a essas raízes...

Prof. Julio: Pois bem, como hobby eu sou DJ, e no último final de semana eu fui tocar numa festa, e pus para tocar Clara Nunes; como os donos da festa eram evangélicos, eles me pediram para parar de tocar Clara Nunes, “porque Clara Nunes é macumba”. E não se podia tocar funk, e muito menos axé. E eu acabei botando alguns sambas... Botei D. Ivone Lara, D. Edith do samba de roda, mas ainda assim o pessoal dizia que era macumba, ai pus aquele pagode e o pessoal parou de reclamar...

Obashanan: Veja só você que coisa bizarra... Enquanto que em Cuba a canção e o jeito de dançar tem toda aquela coisa da santería....

Prof. Julio: Enquanto aqui há toda uma negação disso...

Obashanan: E se você for à origem das coisas, aquilo que deu origem ao culto evangélico, principalmente o pentecostalismo, ele tem suas origens nos cultos anímicos judaicos, que tem tudo a ver com a umbanda, com as religiões tradicionais, vejam só o contrasenso...

Prof. Julio: Olha, eu penso que o trabalho do Adriano é muito interessante, e por isso mesmo é muito ambicioso... Ele está tentando analisar a música umbandista na questão do patrimônio imaterial, que é uma disciplina ainda nova dentro da História, tentando encaixar este tema dentro dos exemplos que ele elegeu, quais são mesmo?

Adriano: Eu peguei o “Eis o ôme” do Noriel Vilela, “Umbanda” do Sylvano Alves, “A Brasileiríssima Cacilda de Assis” do Jorge Ogan e “Saravá Seu Zé Pilintra”, da Genimar. Não que eu vá usar todas as músicas desses discos, mas...

Obashanan: Eu acho que você deve se concentrar no J.B. de Carvalho, porque ele é o pioneiro... Inclusive, ele tinha o pseudônimo de Maciste...

Adriano: Se eu fosse me debruçar em cima do J.B (eu tenho algumas coisas dele que não se encontram facilmente por aí), que tem uma obra muito mais extensa do que só o que ele gravou de umbanda, tem muita coisa de samba, marcha de carnaval, seresta, e a umbanda está em toda essa parte... eu acho que por ora eu não daria conta dessa análise... Eu escolhi esses quatro discos porque, até onde a gente sabe, eles não chegaram a gravar outra coisa além desses discos, e um pouco do meu gosto pessoal também ajudou nessa escolha...

Obashanan: O Noriel Vilela fez mais sucesso com o “16 toneladas”...

Adriano: Mas LP solo, foi só o “Eis o ôme”, e os outros, até onde eu pude descobrir, só gravaram esses discos, não pude encontrar outras referências confiáveis....

Obashanan: E o que você deseja saber mais especificamente sobre isso?

Adriano: Primeiramente eu gostaria de perguntar para você, que organizou todo o acervo fonográfico da FTU, qual é a importância prática de se criar e manter um acervo de música de terreiro, que utilidade este acervo poderia ter?

Obashanan: A importância primeira desse acervo é mesmo aquela questão do resgate cultural... Inicialmente isso começou como um hobby pessoal, mas conforme eu ia resgatando esses discos, fui percebendo que existia uma lacuna no estudo da música popular brasileira, que ela era tributária da música de terreiro. Quando nosso mestre começou com a FTU, eu resolvi ir mais a fundo nessa questão, porque havia muita coisa a ser pesquisada nesse sentido, muita coisa se perdeu, coisa de gravadoras pequenas, gravadoras que já fecharam, e ainda há outro aspecto: quando você está no terreiro, ouvindo aqueles pontos, quando você registra aquilo externamente em estúdio já não é mais o fundamento do terreiro, já há uma perda. E o nosso selo, a “Ayom Records”, procura resgatar esse fundamento, indo gravar lá mesmo nos terreiros, procurando mostrar a música do jeito que os caras fazem lá nos terreiros. Isso é uma coisa que se modifica muito facilmente.

E uma coisa que surgiu no Rio de Janeiro e agora está começando a vir para São Paulo, são os malditos eventos de festivais de curimba, onde o pessoal compõe os pontos como se fosse um samba profano, e as músicas vencedoras são levadas de volta para os terreiros, enquanto que dentro dos terreiros nós temos os pontos de raiz e os pontos de louvação; os pontos de raiz, que hoje são mais raros, são ditados pelas entidades incorporadas dentro dos terreiros e que estão ligados a outros fundamentos mais profundos, como o ponto riscado, o nome da entidade, algumas vezes uma dança. E o ponto de louvação é um cântico inspirado pelas entidades, mas de louvor, de saudação mesmo, não tem o poder de se aprofundar nas instâncias magísticas do culto.

Hoje em dia, em cima dos pontos de louvação, as pessoas começam a fazer as coisas num formato da música profana, da música secular... Tudo isso vai influenciando os terreiros e se perde uma coisa que a gente chama de raiz, e que são importantes para manter o terreiro vivo. Se não há essa raiz, em duas ou três gerações o terreiro até fecha, pois se perdem os fundamentos... E ainda há os cursos de curimba, e isso é uma coisa que não faz sentido, pois é um conhecimento que é transmitido dentro do terreiro. Hoje em dia já não se toca dentro dos terreiros como se tocava antigamente, se ensinam a tocar os três atabaques de uma maneira muito igual e uniforme, enquanto eles devem tocar em conjunto, mas cada um de uma maneira muito específica...

Adriano: Eu também estou aprendendo a tocar atabaque com um sujeito que cobra para ensinar, mas que também tem a faculdade mediúnica de receber as cantigas, e eu tenho notado que nessas cantigas há ainda o fundamento das entidades, ele chegou a ser iniciado como ogan... Mas realmente, o que a gente percebe comparando o que vemos dentro dos terreiros, o que vemos nos festivais de curimba, tanto nos atuais como nos mais antigos, é que realmente existe uma diferença, uma certa falta de fundamento; muitas vezes as pessoas estão pensando que estão louvando a entidade, mas estão sendo ofensivas com ela...

Obashanan: Eu já ví o pessoal cantar que vai tomar uma cerveja com Zé Pelintra no bar, já vi cântico de festival onde Exu desce do morro – isso no Rio de Janeiro – trazendo maconha pro pessoal fumar no terreiro (sic), ou seja, o que que é isso??? É cântico de festival dizendo que Exu Marabô morreu com sete balas na porta dum bar! Tirando o aspecto bizarro do negócio, você tem que pensar que é todo um imaginário negativo que se está levando para dentro do terreiro, isso é um absurdo!

E há também aquela coisa do toque que eu já falei... Uma vez fui convidado para um festival – fui essa vez e nunca mais fui – e enquanto a gente toca, o pessoal começa a fazer um teatro, a incorporar as entidades. Como dentro de um ginásio, de um estádio, de um campo de futebol, vai se ter o ambiente adequado para se incorporar uma entidade, meu amigo? Ou seja, isso é toda uma indução anímica que as pessoas vão trocando por uma realidade espiritual, o que é muito negativo e acaba cortando toda sua relação com a espiritualidade...

Os terreiros mais tradicionais não arredam pé dessa questão da espiritualidade. Veja bem, eu sou um Onilu, ou seja, um iniciado no tambor, e há segredos no tambor que você não pode deixar morrer, que são de tradições quase extintas no Brasil. Por exemplo, eu sou um dos poucos que têm os fundamentos do tambor Batá aqui no Brasil, que são tambores fechados dedicados a Ayom. E o que eu estou tentando explicar é isso; quando você tem noção da existência desses fundamentos e do que eles representam, você não sai tocando qualquer coisa, entendeu? Isso é uma coisa muito séria, que envolve uma iniciação religiosa, pois através do tambor se pode tanto induzir um transe como derrubar alguém, é algo que eu vejo como muito sagrado.

Mudando de rumo, o que eu estou percebendo é que você, Adriano, está vendo a música umbandista mais na questão da música popular, os discos que você pegou são de pessoas que gravaram coisas dentro da temática umbandista, com bandas acompanhando elas...

Adriano: Por exemplo, eu peguei o Jorge Ogan, que era filho-de-santo de D. Cacilda, que recebia o Seu Sete da Lira, e que o trabalho do Seu Sete era todo fundamentado em cima da música, com aquele acompanhamento instrumental... pena que não existam muitos registros do terreiro dele.... existem só três LPs, dois dos quais foram gravados ao vivo, e um dos quais é o do Jorge Ogan, e umas poucas matérias de jornais e revistas; eu conheci um tal de Adão, que foi cambone do Seu Sete, e perguntei se ele não tinha alguma foto para me mostrar.

Mas as fotos que ele me enviou ficaram muito ruins, a única coisa distinguível nelas é o próprio Seu Sete da Lira. E a coisa ficou mais difícil, porque D. Cacilda morreu há pouco tempo e o terreiro não funciona mais, embora suas instalações ainda existam. O que é uma pena, porque o terreiro dele era tão grande quanto qualquer templo da Igreja Universal, recebia milhares de pessoas e acabou quase sem deixar rastros do seu legado...

E isso é um absurdo, pois a história do Seu Sete da Lira, daquela época brava da ditadura militar, é uma das maiores e mais estupendas manifestações de fé da história desse país, e acabou assim, quase do nada... Eu queria ainda te perguntar o seguinte: para você, que organizou esse acervo, qual é a aplicação prática dele, e que questões ele poderia suscitar?

Obashanan: Em primeiro lugar, como já discutimos, é salientar a importância que a música de terreiro tem dentro da música popular brasileira. Outro aspecto é mostrar o quanto a expressão religiosa brasileira pode ser abrangente e diversificada. E mais ainda: é possível acompanhar a história da música gravada em disco, da indústria fonográfica em si, porque desde 1900 já se gravavam pontos de terreiro.

Ainda é possível através desses discos estabelecer até mesmo uma visão sociológica das relações entre as diversas etnias do Brasil, pois todas as tradições, tanto a indígena quanto a africana e a do homem branco podem ser vistas ali nas peças do acervo. Por isso, a idéia é ter o maior número possível de discos, não importa se o disco é ruim ou é bom, ele tem que entrar para o acervo, porque ali está uma forma de se enxergar a religiosidade dos templos.

Segue-se uma breve conversa entre o Prof. Julio e o Mestre Obashanan, que julgo melhor omitir por completo nessa transcriação; ela não acrescenta muita coisa para a nossa pesquisa, além se estar um pouco ininteligível na gravação. Depois desse diálogo, a conversa foi retomada no seguinte ponto:

Obashanan: A umbanda possui quatro raízes fundamentais. Não é só africana, ela possui uma influência muito forte do vermelho, do indígena, com as juremas, as encantarias e muitos outros rituais. Em termos ritualísticos, muita coisa vem dos Bantu, no jeito de cantar, na parte das nomenclaturas quase tudo é iorubá. E há uma influência dentro dos terreiros que não é tão evidente, que é a influência oriental; o próprio nome “umbanda” não é africano, vem do sânscrito “aumbandham” ou “allabanda”, que significa “conjunto das leis divinas”. E existe a influência católica, a influência kardecista, que é a influência do branco, do homem ocidental...

Para se entender a música umbandista também é preciso entender todo este processo de convergência, e que está inserido dentro do ponto cantado...

Há a seguir outra conversa sobre aspectos não muito relevantes para o nosso trabalho, após a qual faço a seguinte pergunta:

Adriano: Uma coisa que eu acho fundamental te perguntar é o seguinte: como as peças do acervo foram/são obtidas? Como é feita a preservação delas?

Obashanan: Muitas coisas eu obtenho indo nos terreiros, pedindo a permissão e gravando o ritual; eu já não tenho tido muito tempo pra fazer isso, mas algo que também eu fiz bastante foi ir atrás de particulares que possuíam acervos antigos, ou coisas gravadas em fitas, e estes me davam as peças ou as emprestavam pra que eu gravasse. Também obtive muita coisa em sebos, mas hoje em dia tem sido muito difícil achar obras mais raras em sebos, ou que porventura já não tenhamos no acervo. Através de colecionadores amigos meus, obtemos peças através de trocas. Todas as peças do acervo são limpas de sua sujeira, procuramos corrigir e recuperar certos danos nos originais, as peças são digitalizadas e a gente coloca a versão digitalizada, uma cópia em mp3 e a outra em Audio, junto com o original dentro de um saco plástico. E procuramos não mexer mais nos originais, deixamos mesmo como documento.

E falando em documento, outra coisa que também faço é resgatar partituras; eu consegui uma partitura raríssima, que estava guardada com algumas coisas do meu sogro, Júlio Lerner, que foi o maior jornalista que esse país já teve e que também foi o responsável pela volta do chorinho no cenário musical. Quando meu sogro morreu, fomos até a casa dele e lá havia um armário com uma caixa dentro, e a minha esposa me deu essa caixa, falando “vê se tem aí alguma coisa que você quer”. Quando abri a caixa, o que que eu vi? A partitura completa de “Perdão, Abaluaiê”, anotada pelo próprio maestro Valdemar Henrique, que compôs essa peça musical!

Adriano: As últimas coisas que eu desejo saber: porque será tão difícil se obter peças de música umbandista, sendo que essa música é voltada para um público restrito, para uma minoria religiosa?

Obashanan: Mas você fala das obras mais antigas?

Adriano: Não, eu mesmo te faço essa pergunta porque o que eu tenho comigo eu consegui baixando na internet, comprando em sebos ou em casas de umbanda, e também tenho umas coisinhas que eu consegui com o próprio artista que gravou o cd... E eu te fiz essa pergunta porque me intriga o fato de ser cada vez mais difícil encontrar os fonogramas... O próprio disco do Sylvano Alves, que eu vou usar em meu trabalho, teve que ser disputado quase a tapas num sebo do centro velho de São Paulo, e foi outra disputa pra que eu conseguisse digitalizar esse disco, porque o pessoal que faz isso costuma sumir com os discos, e eu sou bastante cioso da minha coleção particular. O cara felizmente não me sumiu com o disco, mas a versão digitalizada não ficou muito fiel ao original.

O que desejo por último saber é o seguinte: porque há essa dificuldade? E existe alguma ameaça à preservação deste patrimônio?

Obashanan: Olha, pra começar os cultos afro-brasileiros sempre foram perseguidos, principalmente na época do Getúlio Vargas, e isso restringiu muito a gravação de músicas desse tema. Hoje em dia, já não existem mais gravadoras que se dediquem a gravar a música de terreiro, com exceção do nosso selo, “Ayom Records”, e de outro sujeito que eu ajudei a se instalar aqui em São Paulo, a “Atabaque Records”; o que se vê de novo por aí são produções independentes. Ainda tem a “Chama Produções”, mas o negócio deles é meio na pirataria, eles não são cuidadosos com a produção dos discos.

Outra coisa que eu descobri indo aos sebos é que os gringos estão levando todos os discos, principalmente os DJs para as suas mixagens. Eles chegam nos sebos e levam quase tudo! E não é um ou outro que faz isso, os gringos vão aos sebos de São Paulo, do Rio de Janeiro, e por isso não se acha em sebo quase nada que já não tenhamos em nosso acervo.

Agora quanto a inflências negativas que prejudiquem a música do terreiro é a propria falta de consciência dos umbandistas em preservar e guardar o que eles tem consigo, seja na tradição musical dos terreiros, seja na própria conservação das coisas antigas que alguns têm guardadas consigo. Muitas vezes eu vou atrás de caras que eu sei que tem alguma coisa antiga guardada, e quando chego lá descubro que os caras têm a coragem de jogar fora o material...

Eu acho que o problema com os evangélicos está muto mais na forma de cantar deles, que a partir dos anos 80 invadiu a indústria fonográfica e também influenciou o jeito de cantar dos umbandistas, deixando tudo meio pasteurizado. Atualmente, a nossa gravadora procura registrar a música de terreiro como ela é, a gente procura um cuidado maior nas nossas produções, seja na parte gráfica, seja botando um microfone pra cada atabaque e pra cada cantor, seja na masterização do disco, a nossa gravadora é a única que está na Saraiva, na Livraria Cultura....

Prof. Julio: O senhor poderia explicar para nós como o Adriano poderia trabalhar as obras que ele escolheu numa visão histórica? O trabalho dele é para a graduação em História, mas tem um viés antropológico muito forte, e pode ser que na hora de ser avaliado ele seja cobrado por uma possivel falta de tratamento das questões pertinentes à ciência histórica....

Obashanan: Eu acho que ele poderia investigar a que escola umbandista cada autor está “filiado”. O Sylvano Alves, se não me engano, vem muito lá das encantarias do Norte, da Jurema, o Noriel Vilela parece ser mais do Omolokô, e o Jorge Ogan e a Genimar, que são do Rio de Janeiro, são de influência mais bantu, o jeito deles é mais voltado ao samba, que é de influência bantu.

Outra coisa que pode ser investigada nesse sentido é o seguinte: a figura das entidades umbandistas se reporta a personagens que não só fizeram parte da nossa história, como são figuras comuns a inúmeras culturas tradicionais. O caboclo, por exemplo, está presente em todos os cultos de matriz afro-brasileira, mesmo quem não trabalha incorporando tem o caboclo assentado em algum lugar do terreiro. Ainda tem a figura dos pretos-velhos e das crianças, que representam a sociedade brasileira do século 19. E se você for ver em outras culturas, essas figuras estão presentes, mas sob outra forma.