quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Só acredito em um Deus que saiba dançar (repostagem)



Saudações a todos! Aqui vai um texto que eu cacei na web sobre a preservação de nosso patrimônio cultural, Foi escrito por uma professora, mas nada que jogue um tom bicha nessa postagem:


Em um dia desses eu ouvi de uma aluna que ela tinha parado de fazer capoeira porque o pastor da sua igreja disse que capoeira é coisa do demônio já que tinha tambor, tinha cantoria. Berrei um o que indignado, parei a aula, parei tudo e fomos conversar sobre esse negócio de que tudo que vem da cultura africana ter virado coisa do demo. Outra se recusou a aprender a música " Canto de Ossanha" porque a letra falava " ..Xangô me mandou lhe dizer". Xangô é coisa do demônio.


Já se deram conta disso? Os evangélicos radicais repugnam a marca do povo negro em nossa cultura e não estou falando somente dessa guerra santa contra as religiões afro-brasileiras. Falo da música, da dança, do folclore, de tudo aquilo que o povo africano nos dá em riqueza cultural e identidade. Capoeira é coisa do demônio porque usa tambores. Tambor é coisa de candomblé, coisa de macumbeiro. Macumbeiro é coisa ruim. É coisa do demo.


As lendas brasileiras, o Saci, o Curupira, o Boto, a Mula sem cabeça. tudo coisa do demo. No mês de agosto pisei miudinho porque resolvi contar as lendas brasileiras para meus alunos e algumas mães reclamaram que eu estava ensinando coisas do demônio para seus filhos! Saci agora virou demônio, minha gente. Monteiro Lobato deveria ter sido um adorador e o Sítio do Pica Pau Amarelo um antro de perdição! E a cultura oral brasileira? Vai pra onde? E os criadores de Saci? O que são?


O samba, o gingado malemolente, a brejeirice brasileira...tentação do demônio. Não pode sambar. Não pode sacudir o famoso e adorado "traseiro" da mulata brasileira porque a bunda deve ser coisa do demônio, atenta o homem, desvia de alguma coisa. A bunda brasileira é um pecado espiritual. A bunda brasileira é negra, vale lembrar.Vá entender...


Dança e festa não são apropriadas porque esse deus aí não gosta de batuque, não gosta de mulata, de samba, de bunda, não gosta de riso, de gargalhada, de cachaça e de boêmia. Usa terno cafona, ouve música de gosto duvidoso com sotaque gringo e gorjeios de voz norte-americanos. Fornica, mas fornica dizendo que não gosta muito, pra procriar somente. E se goza, goza escondido com medo da culpa do próprio gozo. Esse deus não é, realmente, brasileiro. É um deus branquelo, preconceituoso e doente do pé. Um deus chatérrimo, diga-se de passagem. A cultura africana que veio para o Brasil nos navios negreiros é tratada como manifestação do coisa ruim. Então a fé tem que ser branca, alva, asséptica, silenciosa. Agressiva contra aquilo que é diferente.


Eu acho que todo mundo pode e deve acreditar no que bem entender. O exercício da fé é individual e, na minha visão, muito saudável. Acredite, apóie-se, dedique-se a que te faz bem e vá cuidar de sua vida. Se quiser passar suas sextas e sábados em reza profunda, em meditação, em sexo tântrico, em adoração à lua, ao pé de cachimbo...por mim! O final de semana é teu. Eu não saio por aí querendo fechar templos budistas, nem igrejas católicas. Não maldigo Buda, Shiva, não quero que as pessoas parem de cantar " hare, hare krishna" e vendam seus incensos por aí. Para mim, cada um na tua e tá tudo ótimo. Antes com fé do que sem fé alguma.


Eu gosto do batuque. Eu gosto do samba. Gosto de negão. Gosto de contar as histórias que ouvi, das noites de lua cheia, das traquinagens do saci, gosto de saber que sou filha de Iansã e ela briga por minha cabeça com Yemanjá, adoro ler a mitologia africana, da mesma forma que adoro a grega. Gosto da miscigenação do meu país e, principalmente, me orgulho de dizer que minha pátria é reconhecida pela sua capacidade de respeito religioso, pela aceitação das diferenças. Será que ainda é?


Cresci em Salvador que transforma a lavagem da escadaria da Igreja do Senhor do Bonfim - sincretizado com Oxalá - uma festa religiosa e profana ao mesmo tempo. Gosto de tomar banho de pipoca porque isso é uma forma ancestral de se proteger meu corpo das doenças, culto esse diretamente relacionado a Omulu, o velho e bom São Lázaro. Aprecio essa riqueza cultural. Gosto disso porque é a cara do Brasil que é todo misturado. Portugueses , negros e índios fizeram a nossa nação. Depois uma galera veio chegando, italianos, japoneses, espanhóis, todo mundo se misturando e deixando um pedacinho de sua cultura natal em nós. Mas ainda é o trio primordial ( português-africano-índio) que faz a nossa identidade, que dá a nossa cara. Por que só a cultura negra é assim tão maligna??


De onde surgiu isso?Quem disse que Deus é europeu?? Quem afirma que tem cor de pele, que tem preferências entre a forma de se cultuar a sua divindade? Por que é a cultura branca européia que é a boa cultura? Não entendo isso.Não entendo tanto negro repudiando a sua própria história em função de crença religiosa.Não é somente fé. É cultura popular. É a nossa história, nosso passado, nosso DNA cultural. Eu não sou preta, nem mulatinha. Pra passar por morena jambo eu tenho que tomar muito sol. Não posso ser chamada de ariana, não sou branquela. E também não sou índia. Sou um mix. Sou cachaça com caju. Sou quindim. Sou mandioca frita. Sou acarajé com coca-cola. Sou pato no tucupi. E muito me orgulho disso, da minha história, da minha linhagem mestiça porque eu sou o que sou.


Não entendo e não aceito essa forma de viver a espiritualidade, a necessidade de esmagar uma forma antiga e autêntica de viver a religiosidade, não entendo isso. O que tem de tão ameaçador na língua africana dos pontos do Candomblé? O que tem de tão assustador em um caboclo de Umbanda? Em uma festa de erê? Macumba? Medo de trabalho, de feitiço, da maldade? Pois eu sei que se pode fazer magia com um terço na mão porque magia é a capacidade de alterar a realidade através da intenção. Posso fazer isso usando qualquer língua, qualquer rito. Magia é magia. Bem é bem e mal é mal.


Mas não venham querer que eu mude a minha identidade. Eu sou assim: um tanto branca, um tanto bugra e um tanto negra. Sou Brasil da cabeça aos pés. E rezo assim, em três raças. E eu, tanto Brasil que sou, não sou menor que nenhum outro, seja ele totalmente ariano, totalmente negro, totalmente oriental. Cada um tem suas características, suas peculiaridades e é isso que se chama de diversidade. Sou como sou e sei disso.


Daqui a pouco vão dizer que o samba, que o chorinho, que o pandeiro, que o zabumba é coisa do demo porque tem preto no meio, que veio da negada, não presta. Toda mulher que sair de vermelho na rua será apedrejada porque está de Pomba Gira e Pomba Gira é coisa do demônio. Volúpia é coisa do diabo. Bundão sambando é tentação. " A partir de hoje as mulheres bundudas estão proibidas de sambar porque é coisa do demo". Que horror.


A imagem da Nossa Senhora já foi chutada e chamada de imagem horrorosa. Pode até ser uma estátua meio feínha, mas é a Nossa Senhora, é a Mãe, é a representação todas as deusas antigas. É Oxum, é Yemanjá, é Ceres, Deméter, é Isis. É a lembrança do culto à Grande Mãe que corre pelo tempo. É muito mais antigo que uma imagem de gesso. É o passado. Inconsciente coletivo da Humanidade. Estou assustada com a empreitada dos evangélicos contra a nossa cultura popular. Eles são organizados politicamente. São efetivamente ativos. Vão conseguindo espaço através do discurso de prosperidade e abundância. Sacodem a Bíblia Sagrada na cara do passado como se ela justificasse uma guerra santa dessas.


E a minha forma de luta é continuar brigando pelo direito à sobrevivência do Saci, da Iara, do Curupira, do samba, da bunda rebolante, do caxixi, do atabaque, da mandinga, do tambor de crioula, das cirandas, do coco, do jongo, das letras de Aldir Blanc, dos afro-sambas de Vinícius e Baden, do banho de pipoca, do abará com vatapá, da capoeira angola e regional, de Jorge Amado, Dorival Caymmi, de Pierre Verge, até da Mula sem Cabeça ,que eu não vou lá muitos com os cornos porque eu ouvi dizer que nas noites de lua cheia ela sai correndo de cemitério em cemitério à procura de cadáveres de crianças que foram enterradas sem ser batizadas e mesmo essa história ter chegado aqui através dos porutgueses, e não dos africanos, eu não quero que ela morra. Porque um mundo sem Mula sem Cabeça e Saci, sem cachaça jogada no chão pro santo, sem a malandragem do samba malaco, sem o carnaval, ah, meu filho, esse mundo é muito chato e sem graça. Tô a fim dele não. Me deixa sambar! Me deixa cantar pra subir. Me deixa ser brasileira, vai! Me deixa!


E pra finalizar, eu coloco aqui alguns vídeos da curimba do Terreiro do Pai Maneco, que está em Curitiba. Já falei muito de Seu Sete (muita gente entra nesse blog pra ver as resenhas que fiz do disco dele - a resenha do disco "Sete Rei da Lira" e do disco da Genimar são os textos mais lidos deste blog, devem ter cada um umas 200 visualizações), e acredito que na parte musical o Terreiro do Pai Maneco é o legítimo sucessor dos trabalhos de Seu Sete da Lira de D. Cacilda (não é à toa que Pai Fernando, o dirigente deste terreiro, também trabalhe com Seu Sete da Lira, ou pelo menos trabalhava). Eu não conheco hoje em dia nenhum terreiro que consiga casar tão bem a musicalidade própria da religião com a música popular, mostrando a óbvia ligação que existe entre elas....


Lá na Aruanda, o Caboclo Giramundo; e na encruzilhada, Seu Sete da Lira, protetores dos curimbeiros, estão apreciando e inspirando esse pessoal mostrar a força de nossa religião e de nossa cultura...Vamos ao que interessa. Duas músicas gravadas pelo Zeca Pagodinho e uma apresentada num festival cultural deste templo...







sábado, 15 de janeiro de 2011

Faramin Yemanjá - 1971?


01. Louvação a Janaína; 02. Corre Gira – Flores para Yemanjá; 03. Louvação a Oxossi; 04. Mironga de Preto Velho; 05. Seu Baluaê; 06. Louvação a São Jorge; 07. Louvação a Xangô; 08. Imberê; 09. Louvação a Oxalá; 10. Louvação a Yemanjá; 11. Louvação aos Caboclos; 12. Louvação à Cumieira; 13. Tem Dendê; 14. Sapo Macumbeiro; 15. Cruzambê;


Saudações a todos! Voltando a fazer o serviço rotineiro, vamos resenhar mais uma peça musical dos meus guardados. Pra hoje, eu escolhi um dos mais conhecidos discos umbandistas, o "Faramin Yemanjá", gravado na inspiração de Tancredo da Silva Pinto, expoente da Umbanda conhecido pelo seu viés fortemente "africanista". Algumas das faixas do disco foram compostas pelo próprio Tancredo, e muito provavelmente ele também canta em algumas delas.


Mas antes de começarmos a discutir o disco em questão, vale a pena tratarmos de alguns aspectos relativos à gênese do movimento umbandista. Até o começo da década de 40, não havia uma distinção muito clara entre a Umbanda e o kardecismo, apesar desta distinção já estar posta desde o princípio do movimento umbandista; a maioria dos umbandistas acredita que a Umbanda enquanto movimento religioso surgiu oficialmente em 15 de novembro de 1908, quando Zélio Fernandino de Morais, na época um jovem de 18 anos, teria recebido pela primeira vez o "Caboclo Sete Encruzilhadas" em público, durante uma sessão kardecista em Niterói. Ao ser repelido daquela sessão, por ser visto como uma entidade inferior e pouco evoluída, o Caboclo Sete Encruzilhadas anunciou que no dia seguinte fundaria na casa de seu médium um novo culto, baseado no evangelho cristão e onde os espíritos dos antigos indígenas e dos ex-escravos poderiam "trabalhar" em prol da humanidade, e que este culto teria o nome de UMBANDA.


Apesar da imensa maioria dos atuais umbandistas estarem, na forma em que praticam a Umbanda, em muito distanciados do entendimento religioso e dos preceitos de culto praticados pela corrente de Zélio Fernandino e do Caboclo das Sete Encruzilhadas, os umbandistas, ou pelo menos as federações que representam os templos religiosos e os intelectuais umbandistas mais tidos em conta tomam o citado acontecimento de 1908 como o mito fundador desta religião. Isto em muito se deve à atuação de Ronaldo Linares, atual presidente da Federação Umbandista do Grande ABC (pra quem não sabe, sobretudo os leitores estrangeiros deste blog - são poucos, mas existem! - e os leitores de fora de São Paulo, Grande ABC é o conjunto das cidades paulistas de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul, que são cidades industriais vizinhas à cidade de São Paulo), que ao criar o primeiro curso de formação sacerdotal umbandista tentou pesquisar as origens desta religião e de alguma forma chegou à figura de Zélio Fernandino.


Pois bem, esta umbanda dos tempos primordiais era, apesar de tudo, ainda muito ligada ao kardecismo (basta lembrar que o livro "O Espiritismo, A Magia e as Sete Linhas de Umbanda", tido como o primeiro livro umbandista, foi escrito em 1933 por Leal de Souza, notório kardecista de seu tempo). Só a partir da década de 40 do século passado é que a Umbanda e o kardecismo se separaram definitivamente. Nesta época, tanto o kardecismo como a Umbanda eram movimentos religiosos com bastante aceitação dentro da classes médias; entre os fomentadores destes movimentos religiosos, encontrávamos os nomes de profissionais liberais como médicos e advogados, militares de alta patente, entre outros. Talvez por esta razão, interessava elidir do entedimento da religião umbandista qualquer forma de religiosidade ou de manifestação que de alguma forma estivesse ligada à cultura negra, como o uso de tambores, por exemplo; desta forma, no entendimento de tais pessoas, a Umbanda deveria se embranquecer para ser aceita socialmente num país oficialmente católico.


Somente a partir do final da década de 40 e início da década de 50 do século passado, surgiram intelectuais umbandistas que não só valorizavam o que havia da cultura negra dentro do movimento umbandista como ligavam a legitimidade deste movimento à presença da negritude dentro da Umbanda. Tancredo da Silva Pinto é um destes intelectuais (o principal deles). Apesar de hoje em dia a maioria dos templos umbandistas conviverem em seu culto com elementos da cultura negra, esta questão ainda está longe de ser encerrada (quem acompanha comunidades umbandistas em redes sociais, ou participa de listas e fóruns de discussão umbandistas na web, sabe que volta e meia surgem polêmicas sobre o uso dos atabaques, o sacrifício ritual de animais, o culto a exus e pomba-giras e até mesmo o uso do fumo e das bebidas alcoólicas e sabe bem do que falo).


Em louvor desta corrente africanista, conhecida como Omolokô, se gravou o disco que ora resenho. Foi lançado em 1971, mas as gravações parecem ser bem mais antigas, pelo menos parece que são de uns 20 ou 30 anos anteriores ao lançamento do disco. Para definir a obra como um todo, poderíamos usar a seguinte oração, que consta na contracapa do do disco: "São toadas, sambas, jongos, batuques e catimbós autênticos. São novos subsídios para o estudioso dos cultos afro-brasileiros; ao místico, aficionado da Umbanda, páginas originais cheias de poesia e de religiosidade".


O mérito do disco está justamente nesta poesia e nesta religiosidade, que coloca a música de terreiro em ligação com suas raízes na música popular. A corrente umbandista do Omolokô foi a primeira a defender publicamente (além dos vários livros que escreveu, Tancredo da Silva Pinto foi fundador de diversas federações umbandistas e escreveu artigos sobre Umbanda para diversos jornais de grande circulação) a beleza da Umbanda na sua influência negra, o quanto ela é o resultado da convergência de vários sistemas religiosos e o quanto ela está presente em nossa cultura, principalmente na nossa música...


E vamos ao colírio alucinógeno...


Para ouvir a faixa 11, "Louvação a Yemanjá", é só clicar aí embaixo:

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011