sexta-feira, 27 de julho de 2012

Da natureza do fanatismo, por Amós Oz


"Um bom fanático está sempre pronto para um argumento"




Como curar um fanático? Perseguir um punha­do de fanáticos através das montanhas do Afega­nistão é uma coisa. Lutar contra o fanatismo, outra muito diferente. Receio não saber muito bem como perseguir fanáticos pelas montanhas, mas talvez possa apresentar uma ou duas reflexões acerca da natureza do fanatismo e sobre as formas, se não de curá-lo, pelo menos de controlá-lo. A chave do ataque de 11 de Setembro contra os Estados Unidos não deve ser apenas procurada no confronto exis­tente entre pobres e ricos.


Esse confronto constitui um dos mais terríveis problemas do mundo, mas estaríamos errados se concluíssemos que o 11 de Setembro se limitou a ser um ataque de pobres contra ricos. Não se trata apenas de "ter e não ter". Se fosse assim tão simples, deveríamos esperar que o ataque viesse de África, onde estão os países mais pobres, e que talvez fosse lançado contra a Arábia Saudita e os emirados do Golfo, que são os estados produtores de petróleo e os países mais ricos. Não. É uma batalha entre fanáticos que crêem que o fim, qualquer fim, justifica os meios, e os restantes de nós, para quem a vida é um fim, não um meio.


Tra­ta-se de uma luta entre os que pensam que a justiça, o que quer que se entenda por tal palavra, é mais importante do que a vida, e aqueles que, como nós, pensam que a vida tem prioridade sobre muitos outros valores, convicções ou credos. A actual crise mundial, no Médio Oriente, em Israel e na Pales­tina, não é uma consequência dos valores do Islão. Não se deve à mentalidade dos Árabes, como pro­clamam alguns racistas. De forma alguma. Deve-se à velha luta entre fanatismo e pragmatismo. Entre fanatismo e pluralismo. Entre fanatismo e tolerân­cia. O 11 de Setembro não é uma consequência da bondade ou da maldade dos Estados Unidos, nem tem a ver com o capitalismo ser perigoso ou esplen­doroso. Nem tão-pouco com ser oportuno ou com a necessidade de travar ou não a globalização. Tem a ver com a típica reivindicação fanática: se penso que alguma coisa é má, aniquilo-a juntamente com aquilo que a rodeia.


O fanatismo é mais velho do que o Islão, do que o Cristianismo, do que o Judaísmo. Mais velho do que qualquer Estado, governo ou sistema polí­tico. Infelizmente, o fanatismo é um componente sempre presente na natureza humana, um gene do Mal, para apelidá-lo de algum modo. Aqueles que fazem explodir clínicas onde se pratica o aborto, nos Estados Unidos, os que incendeiam sinagogas e mesquitas na Alemanha, só se diferenciam de Bin Laden na magnitude, mas não na natureza dos seus crimes. Naturalmente, o 11 de Setembro produziu tristeza, raiva, incredulidade, surpresa, abatimento, desorientação e, é certo, algumas respostas racistas - antiárabes e antimuçulmanas - por todo o lado. Quem teria ousado pensar que ao século XX seseguiria de imediato o século XI ?


A minha própria infância em Jerusalém tornou--me especialista em fanatismo comparado. A Jeru­salém da minha infância, lá pelos anos 40, estava repleta de autoproclamados profetas, redentores e messias. Ainda hoje, todo o jerosolimitano possui a sua fórmula pessoal para a salvação instantânea.Todos dizem que chegaram a Jerusalém - e cito uma frase famosa de uma velha canção - para a construírem e serem construídos por ela. Na realida­de, alguns (judeus, cristãos, muçulmanos, socialistas, anarquistas e reformadores do mundo) acudiram a Jerusalém, não tanto para a construírem ou serem construídos por ela, mas para serem crucificados ou para crucificarem outros, ou para ambas as coisas ao mesmo tempo.


Há uma desordem mental muito arreigada, uma reconhecida doença mental chama­da "síndrome de Jerusalém": uma pessoa chega, inala o ar puro e maravilhoso da montanha e, de repente, inflama-se e pega fogo a uma mesquita, a uma igreja ou a uma sinagoga. Ou então, tira a roupa, sobe a um rochedo e começa a fazer profecias. Já ninguém escuta. Mesmo hoje em dia, mesmo na Jerusalém actual, em qualquer fila do autocarro, é provável que surja uma exaltada conferência na via pública entre pessoas que não se conhecem de nenhum lado, mas que discutem política, moral, estratégia, História, identidade, religião e as verda­deiras intenções de Deus. Os participantes nessas conferências, enquanto discutem política e teologia, o Bem e o Mal, tentam, no entanto, abrir caminho à cotovelada até aos primeiros lugares da fila. Toda a gente grita, ninguém ouve. Excepto eu. Eu escu­to, às vezes, e assim ganho a vida.


Confesso que em miúdo, em Jerusalém, tam­bém eu era um pequeno fanático limitado por uma lavagem cerebral. Com presunção de superioridade moral, chauvinista, surdo e cego a qualquer ponto de vista que fosse diferente do poderoso discurso judeu sionista da época. Eu era um rapaz que atirava pedras, um rapaz da Intifada judaica. Na verdade, as primeiras palavras que aprendi a dizer em inglês, à parte o yes e o no, foram British, go home!, que era o que nós, rapazes judeus, costumá­vamos gritar enquanto apedrejávamos as patrulhas britânicas de Jerusalém.


Falando de ironias da His­tória, no meu romance de 1995, Uma Pantera na Cave, descrevo como um rapaz chamado ou com a alcunha Profí perde o seu fanatismo, o seu chauvi­nismo, e muda quase por completo no espaço de duas semanas ao tornar-se mais relativista. Em se­gredo, ficara amigo de um inimigo: concretamente, de um sargento da polícia britânica muito afável e pouco competente. Os dois encontravam-se às es­condidas e ensinavam inglês e hebraico um ao ou­tro. E o rapaz descobre que as mulheres não têm cornos nem cauda, uma revelação quase tão cho­cante para ele como a descoberta de que nem os Britânicos nem os Árabes têm cornos ou cauda.


De algum modo, o rapaz desenvolve um sentido de ambivalência, uma capacidade para abandonar as suas crenças a preto e branco. Mas, naturalmente, paga um preço por isso: no final deste pequeno romance já não é uma criança, mas uma pequena pessoa mais velha, um pequeno adulto. Grande parte da alegria e do fascínio, do entusiasmo e da singeleza da vida desapareceram. E, além disso, ga­nha outra alcunha: os antigos amigos começam a chamá-lo de traidor. Vou citar a primeira página e meia de Uma Pantera na Cave, porque julgo que é a melhor forma de exprimir aquilo que eu penso em matéria de fanatismo. É o primeiro capítulo de Uma Pantera na Cave:


Fui apelidado de traidor muitas vezes durante a minha vída. Da primeira, tinha eu doze anos e três meses e vivia num bairro de um dos extremos de Jerusalém. Foi nas férias grandes, a menos de um ano de os Ingleses deixarem o país e de o Estado de Israel nascer no meio da guerra.


Certa manhã apareceu uma inscrição a grossos tra­ços negros na parede da nossa casa, por baixo da janela da cozinha: PROFI BOGUED SHAFEL - "Profi é um reles traidor". A palavra shafel, reles, levantou uma ques­tão que ainda hoje, ao escrever esta história, me intriga: poderá um traidor deixar de ser reles? Se a resposta for não, por que motivo é que o Tchita Reznik (conheci-lhe logo a letra) se teria dado ao trabalho de acrescentar a palavra "reles"? Se for sim, em que circunstâncias é que a traição não é um acto reles?


Foi a partir dessa altura que me colaram a alcunha de "Profi", abreviatura de "Professor", resultante da mi­nha obsessão em examinar as palavras. Ainda hoje gosto imenso de palavras, de as reunir, ordenar, misturar, in­verter, combinar — um pouco ao jeito dos avarentos, obcecados por moedas e notas, ou dos jogadores por cartas de jogar.


O meu pai tinha saído às seis e meia da manhã para ir buscar o jornal e deparara-se com a inscrição logo por baixo da janela da cozinha. Ao pequeno-almoço, enquan­to barrava uma fatia de pão integral com compota de framboesa, cravou a faca no boião, quase até ao cabo, e exclamou com o seu tom pausado:


- Mas que surpresa! Que patifaria cometeu Vossa Excelência para merecermos tamanha honra?!


- Não o aflijas logo pela manhã! - atalhou a mi­nha mãe. - Já lhe basta aturar os outros rapazes.


Nessa altura o meu pai vestia roupa de caqui, como a maioria dos homens do nosso bairro, e tinha os modos e a voz de uma pessoa cheia de carradas de razão. Ergueu a faca e retirou do fundo do frasco um pedaço viscoso de doce de framboesa; espalhou-o por igual sobre as metades da fatia e replicou:


- É verdade que hoje em dia quase toda a gente usa a palavra "traidor" com demasiada leviandade. Mas o que vem a ser um traidor? Sim, o que é, com efeito? É um homem sem honra, um sujeito que, às escondidas, por detrás das costas, por um qualquer benefício insuspeito, ajuda o inimigo contra o seu povo, chegando mesmo a desgraçar a sua família e amigos. É mais infame do que um assassino. E tu, faz-me o favor de acabar de comer esse ovo! Na Ásia há quem morra de fome, está aqui es­carrapachado no jornal.


A minha mãe puxou o meu prato para si e acabou de comer os restos do meu ovo e pão com doce - não por força do apetite, mas por amor à paz - e rematou:


- Quem ama, não atraiçoa.


Mais à frente no romance, o leitor pode des­cobrir que a mãe estava completamente enganada. Só quem ama se pode converter num traidor. A trai­ção não é o reverso do amor: é uma das suas opções. Traidor, julgo, é quem muda aos olhos daqueles que não podem mudar e não mudarão, daqueles que detestam mudar e não podem conceber a mudança, apesar de quererem sempre mudar os outros. Por outras palavras, traidor, aos olhos do fanático, é qualquer um que muda. E é difícil a escolha entre converter-se num fanático ou converter-se num traidor. Não converter-se num fanático significa ser, até certo ponto e de alguma forma, um traidor aos olhos do fanático. Eu fiz a minha escolha e esse romance é disso a prova fiel.


Intitulei-me especialista em fanatismo compa­rado. Não é nenhuma piada. Se alguém souber de uma escola ou universidade que vá abrir um departamento de Fanatismo Comparado, cá estarei eu para solicitar um lugar de professor. Na minha qualidade de antigo jerosolimitano, e como fanático reabilitado, sinto-me plenamente qualificado para esse posto. Talvez seja chegado o momento de todas as escolas, todas as universidades, facultarem pelo menos um par de cursos de Fanatismo Comparado, pois este está em toda a parte. Não me refiro tão-só às óbvias manifestações de fundamentalismo e fer­vor cego.


Não me refiro apenas aos fanáticos natos que vemos na televisão entre multidões histéricas que agitam os punhos contra as câmaras, ao mesmo tempo que gritam slogans em línguas que não en­tendemos. Não, o fanatismo está em todo o lado. Com modos mais silenciosos, mais civilizados. Está presente à nossa volta e talvez também dentro de nós. Conheço bastantes não-fumadores que o quei­mariam vivo por acender um cigarro ao pé deles! Conheço muitos vegetarianos que o comeriam vivo por comer carne! Conheço pacifistas, alguns dos meus colegas do Movimento de Paz israelita, por exemplo, desejosos de dispararem directamente à minha cabeça só por eu defender uma estratégia ligeiramente diferente da sua para conseguir a paz com os Palestinianos. No entanto, não afirmo que qualquer um que levante a voz contra alguma coisa seja um fanático.


Não sugiro que qualquer um que manifeste opiniões veementes seja um fanático, claro que não. Digo que a semente do fanatismo brota ao adoptar-se uma atitude de superioridade moral que impeça a obtenção de consensos. É uma praga muito comum que, certamente, se manifesta em diferentes graus. Um ou uma militante ecologista pode adoptar uma atitude de superioridade moral que impeça a obtenção de consensos, mas causará muito pouco dano se o compararmos, por exemplo, com um depurador étnico ou um terro­rista.


Mais ainda, todos os fanáticos sentem uma atracção, um gosto especial, pelo kitsch. Muito fre­quentemente, o fanático só consegue contar até um, já que dois é um número demasiado grande para ele ou para ela. Ao mesmo tempo, descobrire­mos que, com alguma frequência, os fanáticos são sentimentais incuráveis: preferem muitas vezes sentir do que pensar, e têm uma fascinação especial pela sua própria morte. Desprezam este mundo e estão impacientes por trocá-lo pelo "Paraíso". No entanto, o seu Paraíso é geralmente imaginado como o final de um mau filme.


Vou contar uma história em jeito de divaga­ção: eu sou um reconhecido divagador, estou sem­pre a divagar. Um querido amigo e colega meu, o admirável romancista israelita Sammy Michael, pas­sou uma vez pela experiência, por que todos nós passamos de vez em quando, de andar de táxi du­rante um bom tempo com um condutor que lhe ia dando a típica palestra sobre como é importante para nós, Judeus, matar todos os Árabes. Sammy ouvia-o e, em vez de lhe gritar, "Que homem hor­rível que você é! É nazi ou fascista?", decidiu ir por outro caminho e perguntou-lhe: "E quem acha que deveria matar todos os Árabes?" O taxista dis­se: "O que quer dizer com isso? Nós! Os Judeus Israelitas! Temos de o fazer! Não há escolha. Veja só o que nos fazem todos os dias!" "Mas quem, especificamente, é que deveria fazer o trabalho? A polícia? Ou o Exército talvez? O corpo de bom­beiros ou as equipas médicas? Quem deveria fazer o trabalho?"


O taxista coçou a cabeça e disse: "Penso que devíamos dividi-lo em partes iguais entre cada um de nós, cada um de nós devia matar alguns" E Sammy Michael, ainda no mesmo jogo, disse: "Pois bem, suponha que a si lhe toca um determinado bloco residencial da sua cidade natal, Haifa, e que bate às portas ou toca às campainhas, e pergunta: 'Desculpe, senhor, ou desculpe, senhora. Por acaso é árabe?' E se a resposta for afirmativa, você dispa­ra. Quando acaba o seu bloco, dispõe-se a regressar a casa, mas, ao fazê-lo", continuou Sammy, "ouve, algures no quarto andar do seu bloco, o choro de um bebé. Voltaria para matar o bebé? Sim ou não?" Houve um momento de silêncio e, então, o taxista disse a Sammy: "Sabe, o senhor é um homem muito cruel."


Esta é uma história muito significativa, por­que há algo na natureza do fanático que, essencial­mente, é muito sentimental e, ao mesmo tempo, carece de imaginação. E isto, às vezes, dá-me espe­rança - naturalmente, muito limitada - de que injectando alguma imaginação nas pessoas, talvez as ajudemos a reduzir o fanático que trazem dentro de si e a sentirem-se incomodados. Não é um remé­dio rápido, não é uma cura rápida, mas pode ajudar.Conformidade e uniformidade, a urgência de "pertencer a" e o desejo de fazer com que todos os demais "pertençam a", podem constituir perfeita­mente as formas de fanatismo mais amplamente difundidas, embora não sejam as mais perigosas. Lembrem-se de A Vida de Brian, esse filme magnífi­co dos Monty Python, em que o protagonista diz à multidão dos seus futuros discípulos "Sois todos indivíduos!", e a multidão responde aos gritos "So­mos todos indivíduos!", excepto um lá no meio, que diz timidamente com um fio de voz: "Eu não". Mas todos o mandam calar furiosos.


Uma vez tendo dito que a conformidade e a uniformidade são formas moderadas mas expandidas de fanatismo, devo acrescentar que, com frequência, o culto da perso­nalidade, a idealização de líderes políticos ou reli­giosos, a adoração de indivíduos sedutores, podem muito bem constituir outras formas disseminadas de fanatismo. O século XX parece ter dado mostras excelentes neste sentido. Por um lado, os regimes totalitários, as ideologias mortíferas, o chauvinis­mo agressivo, as formas violentas de fundamentalismo religioso.


Por outro, a idolatria universal de uma Madonna ou de um Maradona. Talvez o pior aspecto da globalização seja a infantilização do género humano — "o jardim de infância global", cheio de brinquedos e adereços, rebuçados e chupa--chupas. Até meados do século XIX, mais ano menos ano - varia de um país para outro, de um conti­nente para outro, mas grosso modo até um deter­minado momento do século XIX, a maior parte das pessoas em grande parte do mundo tinha, pelo menos, três certezas básicas: onde passarei a minha vida, o que farei para viver e o que acontecerá co­migo depois de morrer.


Quase toda a gente - há uns cento e cinquenta anos - sabia que passaria a sua vida onde nascera ou em algum lugar próximo, talvez na povoação vizinha. Todos sabiam que ganhariam a vida como os seus pais ou de forma semelhante. E que, portando-se bem, iriam para um mundo melhor depois de mortos. O século XX provocou uma erosão destas e de outras certezas, destruindo-as muitas vezes. A perda destas certezas elementares pode ter originado o meio século mais contaminado de ideologias, seguido do meio século mais ferozmente egoísta, hedonista e mais virado para a superficialidade.


No que respeita aos movi­mentos ideológicos da primeira metade do século passado, o mantra costumava ser: "Amanhã será um dia melhor - façamos sacrifícios hoje, levemos os outros a fazer sacrifícios, para que os nossos filhos herdem um paraíso no futuro". Num determinado momento à volta de meados do século, esta noção foi substituída pela da felicidade instantânea. Não se tratava já do famoso direito a lutar pela felicidade, mas da ilusão - actualmente tão difundida - de que a felicidade está exposta nas prateleiras, de que basta chegar a ser suficientemente rico para com­prar a felicidade a troco de dinheiro. A ideia do "foram felizes para sempre, a ilusão da felicidade duradoura, é, na verdade, um oxímoro. Pode ser pontual ou prolongada, mas a felicidade eterna não é felicidade, do mesmo modo que um orgasmo sem fim não seria de forma alguma um orgasmo.


A essência do fanatismo reside no desejo de obrigar os outros a mudar. Nessa tendência tão comum de melhorar o vizinho, de corrigir a esposa, de fazer o filho engenheiro ou de endireitar o ir­mão, em vez de deixá-los ser. O fanático é uma das mais generosas criaturas. O fanático é um grande altruísta. Está mais interessado nos outros do que em si próprio. Quer salvar a nossa alma, redimir-nos. Livrar-nos do pecado, do erro, do tabaco, da nossa fé ou da nossa carência de fé. Quer melhorar os nossos hábitos alimentares, ou curar-nos do alcoolismo e do hábito de votar. O fanático morre de amores pelo outro. Das duas uma: ou nos deita os braços ao pescoço porque nos ama de verdade, ou se atira à nossa garganta em caso de sermos irrecuperáveis.


Em qualquer caso, topograficamente falando, deitar os braços ao pescoço ou atirar-se à garganta é quase o mesmo gesto. De uma maneira ou de outra, o fanático está mais interessado no outro do que em si mesmo, pela simples razão de que tem um mesmo bastante exíguo, ou mesmo nenhum mesmo. O senhor Bin Laden e os da sua laia não se limitam a odiar o Ocidente. Não é assim tão simples. Creio antes que querem salvar as nos­sas almas, querem libertar-nos dos nossos horríveis valores, do materialismo, do pluralismo, da demo­cracia, da liberdade de opinião, da emancipação da mulher... Tudo isto, segundo os fundamentalistas islâmicos, é muito, mas mesmo muito prejudicial à saúde. Com toda a certeza, o objectivo imediato de Bin Laden não era Nova Iorque ou Madrid.


O seu objectivo era converter os muçulmanos pragmáti­cos, moderados, em crentes "autênticos", no seu ti­po de muçulmanos. O Islão, para Bin Laden, estava debilitado pelos "valores americanos", e, para defen­der o Islão, não basta ferir o Ocidente e feri-lo forte e feio. Não. No final, o Ocidente deve ser conver­tido. A paz só prevalecerá quando o mundo se tiver convertido, não já ao Islão, mas à fornia mais rí­gida, feroz e fundamentalista do Islão. Será para nosso bem. No fundo, Bin Laden ama-nos. O 11 de Setembro, no seu modo de pensar, foi um acto de amor. Fê-lo para nosso bem, quer mudar-nos, quer redimir-nos.


Muito frequentemente, tudo começa na famí­lia. O fanatismo começa em casa. Começa precisa­mente pela urgência tão comum em mudar um ser querido para seu próprio bem. Começa pela urgên­cia do sacrifício para bem de um vizinho muito amado. Começa pela urgência de dizer a um filho: "Tens de fazer como eu, não como a tua mãe" ou "Tens de fazer como eu, não como o teu pai" ou "Por favor, sê muito diferente de ambos". Ou quan­do os cônjuges dizem entre si: "Tens de mudar, tens de fazer como eu, ou, de contrário, o casamento não resultará". Com frequência, começa pela ur­gência em viver a própria vida através da vida de outrem. Em anular-se a si próprio para facilitar a realização do próximo ou o bem-estar da geração seguinte. O auto-sacrifício costuma infligir terrí­veis sentimentos de culpa ao seu beneficiário, mani­pulando-o ou mesmo controlando-o. Se eu tivesse de escolher entre os dois estereótipos de mãe da famosa anedota judaica - a mãe que diz ao filho, "Acaba o pequeno-almoço ou mato-te", ou a que diz, "Acaba o pequeno-almoço ou mato-me" -, provavelmente escolheria o menor de dois males, não acabar o pequeno-almoço e morrer, em vez de não acabar o pequeno-almoço e viver com um sen­timento de culpa para o resto da minha vida.


Voltemos agora ao sombrio papel dos fanáticos e ao fanatismo no conflito entre Israel e a Palestina, entre Israel e grande parte do mundo árabe. O cho­que entre Israelitas e Palestínianos não é, na sua essência, uma guerra civil entre dois segmentos da mesma população, do mesmo povo, da mesma cul­tura. Não é um conflito interno, mas internacional. Felizmente. Porque os conflitos internacionais são mais fáceis de resolver do que os internos - guer­ras religiosas, lutas de classes, guerras de valores. Disse mais fáceis, não fáceis.


Na sua essência, a ba­talha entre Judeus Israelitas e Árabes Palestiníanos não é uma guerra religiosa, embora os fanáticos de ambos os lados façam o impossível por transformá-la numa guerra religiosa. Fundamentalmente, não é mais do que um conflito territorial sobre a dolo­rosa questão: "De quem é a terra?" É um doloroso conflito entre quem tem razão e quem tem razão, entre duas reivindicações muito convincentes, mui­to poderosas, sobre o mesmo pequeno país. Nem guerra religiosa, nem guerra de culturas, nem desa­cordo entre duas tradições. Simplesmente uma verdadeira disputa territorial sobre quem é o pro­prietário da casa. E eu acredito que isto se pode resolver.


Acredito, de uma forma simples e cautelosa, que a imaginação possa servir de protecção parcial e limitada contra o fanatismo. Acredito que uma pessoa capaz de imaginar o que as suas ideias im­plicam, como no caso do bebé a chorar no quarto andar, pode converter-se num fanático parcial, o que já constitui uma ligeira melhoria. Neste mo­mento, bem gostaria de vos dizer que a literatura é a resposta, porque a literatura contém um antídoto contra o fanatismo, que é a injecção de imaginação nos leitores.


Gostava de poder receitar simplesmente: leiam literatura e ficarão curados do vosso fana­tismo. Infelizmente, não é assim tão simples. Infe­lizmente, muitos poemas, muitas histórias e dramas ao longo da História foram utilizados para fomen­tar o ódio e a superioridade moral nacionalista. Apesar de tudo, há algumas obras literárias que julgo poderem ajudar até certo ponto. Não operam milagres, mas podem ajudar. Shakespeare pode ajudar muito: todo o extremismo, toda a cruzada intransigente, toda a forma de fanatismo em Sha­kespeare acaba, mais tarde ou mais cedo, em tragé­dia ou em comédia. No fina!, o fanático nunca está mais feliz ou mais satisfeito, ora morrendo, ora con­vertendo-se em bobo. É uma boa injecção. E Gogol também pode ajudar: faz com que, grotescamente, os seus leitores tomem consciência do pouco que sabemos, mesmo quando estamos convencidos de ter cem por cento de razão. Gogol ensina-nos que o nosso próprio nariz pode transformar-se num inimigo terrível, num inimigo fanático até. E pode acontecer que acabemos por perseguir fanaticamen­te o nosso próprio nariz. Em si, não é uma má lição.


Kafka é um bom educador a este respeito, se bem que tenho a certeza de que ele nunca pretendeu leccionar contra o fanatismo. Mas Kafka mostra-nos que também existe escuridão e enigma e engano quando pensamos que não fizemos absolutamente nada de mal. Isso ajuda. (Se houvesse tempo e espa­ço, poderia falar muito mais sobre Kafka e Gogol e sobre a subtil conexão que vejo entre ambos, mas vamos deixá-lo para outra ocasião). E William Faulkner pode ajudar. O poeta israelita Yehuda Amíjai expressa tudo isto melhor do que eu poderia fazer, quando afirma: "Onde temos razão não po­dem crescer flores". É uma frase muito útil. Assim, de certo modo, algumas obras literárias podem ajudar, mas não todas.


E se me prometerem não levar à letra o que vou dizer, atrever-me-ia a assegurar que, pelo me­nos em princípio, julgo ter inventado o remédio contra o fanatismo. O sentido de humor é uma grande cura. Jamais vi na minha vida um fanático com sentido de humor, nem nunca vi qualquer pessoa com sentido de humor converter-se num fanático, a menos que ele ou ela tivessem perdido esse sentido de humor. Os fanáticos são frequen­temente sarcásticos. Alguns deles têm um sarcasmo muito agudo, mas de humor, nada. Ter sentido de humor implica a capacidade de se rir de si próprio.


Humor é relativismo, humor é a habilidade de nos vermos como os outros nos vêem, humor é a capa­cidade de perceber que, por muito cheia de razão que uma pessoa se sinta e por mais tremendamente enganada que tenha estado, há um certo lado da vida que tem sempre a sua graça. Quanto mais ra­zão se tem, mais divertida se torna a pessoa. E, neste caso, pode-se ser um israelita convicto da sua razão ou um palestiniano convicto da sua razão ou qual­quer pessoa convicta da sua razão. Com sentido de humor, bem pode acontecer que se seja parcial­mente imune ao fanatismo.


Se eu pudesse comprimir o sentido de humor em cápsulas e, depois, persuadir povoações inteiras a engolirem as minhas pílulas humorísticas, imuni­zando desse modo toda a gente contra os fanáticos, talvez um dia chegasse ao Prémio Nobel de Medi­cina, em vez do de Literatura. Mas escutem! A sim­ples ideia de comprimir o sentido de humor em cápsulas, a simples ideia de fazer com que os outros engulam as minhas pílulas humorísticas para seu próprio bem, curando-os assim do seu mal, já está ligeiramente contaminada de fanatismo.


Muito cuidado, o fanatismo é extremamente infeccioso, mais contagioso do que qualquer vírus. Pode-se contrair fanatismo facilmente, até mesmo ao tentar vencê-lo ou combatê-lo. Basta ler os jornais ou ver televisão para verificar como as pessoas se conver­tem facilmente em fanáticos antifanáticos, em faná­ticos antifundamentalistas, em cruzados antijihad. Afinal, se não podemos vencer o fanatismo, talvez possamos, ao menos, contê-lo um pouco. Como disse antes, a capacidade de rirmos de nós próprios constituí uma cura parcial, a capacidade de nos vermos como os outros nos vêem é um outro remé­dio. A capacidade de conviver com situações cujo final está em aberto, inclusivamente de aprender a desfrutar com essas situações, de aprender a desfrutar com a diversidade, também pode ajudar. Não estou a pregar o relativismo moral total, com certeza que não.


Tento realçar a nossa capacidade de nos imaginarmos uns aos outros. Façamo-lo a todos os níveis, começando pelo mais quotidiano. Imaginemos o outro quando lutamos, imaginemos o outro quando nos queixamos, imaginemos o ou­tro precisamente quando sentimos que temos cem por cento de razão. Mesmo quando se tem cem por cento de razão e o outro está cem por cento equi­vocado, continua a ser útil imaginar o outro. Na verdade, fazemos isso a todo o momento. O meu último romance, "O Mesmo Mar", versa sobre seis ou sete pessoas espalhadas pelo globo e que têm entre si uma comunicação quase mística. Pressentem-se, comunicam constantemente entre si de forma te­lepática, embora se encontrem disseminados pelos quatro cantos da Terra.


A capacidade de conviver com situações de final em aberto está, imaginariamente, em aberto para todos nós: escrever urn romance, por exemplo, implica, entre outras responsabilidades, a necessida­de de nos levantarmos todas as manhãs, tomar um café e começar a imaginar o outro. Como seria se eu fosse ela, e como seria se eu fosse ele? E na minha experiência pessoal, na minha própria história de vida, na minha história familiar, não consigo deixar de pensar frequentemente que, com uma ligeira modificação dos meus genes ou das circunstâncias dos meus pais, eu poderia ser ele ou ela, poderia ser um colono da Margem Ocidental, poderia ser um extremista ultra-ortodoxo, poderia ser um judeu oriental de um país do Terceiro Mundo, poderia ser alguém diferente. Poderia ser um dos meus inimi­gos.


Imaginar isto é sempre uma prática útil. Há muitos anos, quando ainda era uma criança, a mi­nha sapientíssima avó explicou-me com palavras muito simples a diferença entre um judeu e um cristão, não entre um judeu e um muçulmano, mas entre um judeu e um cristão: "Olha", disse, "os Cris­tãos acreditam que o Messias já cá esteve uma vez e que, certamente, regressará um dia. Os Judeus de­fendem que o Messias ainda está por chegar. Por isso", disse a minha avó, "por isso, tem havido tanta raiva, tantas perseguições, derramamento de san­gue, ódio... Porquê? Por que não podemos simples­mente esperar todos e ver o que acontece? Se o Messias voltar e disser, 'Olá, estou muito contente por vê-los de novo', os Judeus terão de aceitar. Se, pelo contrário, o Messias chegar e disser, 'Como estão, prazer em conhecê-los', toda a Cristandade terá de pedir desculpa aos Judeus. Entretanto", disse a minha sábia avó, "vive e deixa viver". Ela era, definitivamente, imune ao fanatismo. Conhecia o segredo de viver em situações de final em aberto, no meio de conflitos não resolvidos, com a diversidade de outras pessoas.


Comecei por dizer que o fanatismo muitas vezes começa em casa. Quero terminar dizendo que o antídoto também se pode encontrar em casa, praticamente na ponta dos nossos dedos. Nenhum homem é uma ilha, disse John Donne, mas atrevo-me humildemente a acrescentar: nenhum homeme nenhuma mulher é uma ilha, mas cada um de nós é uma península, com uma metade unida à terra firme e a outra a olhar para o oceano - uma meta­de ligada à família, aos amigos, à cultura, à tra­dição, ao país, à nação, ao sexo e à linguagem e a muitas outras coisas, e a outra metade a desejar que a deixem sozinha a contemplar o oceano. Penso que nos deviam deixar continuar a ser penínsulas.


Todo o sistema político e social que converte cada um de nós numa ilha donneana e o resto da humanidade em inimigo ou rival é uma monstruosidade. Mas ao mesmo tempo, todo o sistema ideológico, político e social que apenas nos quer transformar em molécu­las do continente, também é uma monstruosidade. A condição de península é a própria condição hu­mana. É o que somos e o que merecemos continuar a ser. De modo que, em certo sentido, em cada casa, em cada família, em cada condição humana, em cada relação humana, temos de facto uma relação entre um certo número de penínsulas, e será me­lhor que nos lembremos disso antes de nos tentar­mos modelar uns aos outros, de virarmos as costas uns aos outros e de tentarmos que quem está ao nosso lado se torne igual a nós, enquanto que o que ele ou ela necessitam é de contemplar o oceano durante algum tempo.


E esta é a verdade para os grupos sociais, para as culturas, para as civilizações, para as nações e, é verdade, para os Israelitas e os Palestinianos. Nenhum deles é uma ilha e nenhum deles pode misturar-se inteiramente com o outro. Estas duas penínsulas deviam estar relacionadas e, ao mesmo tempo, deixadas à sua vontade. Sei que esta é uma mensagem pouco usual num tempo em que a violência, a ira, a vingança, o fundamentalismo, o fanatismo e o racismo campeiam livremente no Médio Oriente e noutros lugares.


Sentido de humor, a capacidade de imaginar o outro, a capacidade de reconhecer a capacidade peninsular que existe em cada um de nós, pode pelomenos constituir uma defesa parcial contra o gene fanático que todos temos dentro de nós.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Na Gira dos Exus - 1974




01. Gira Mundo; 02 Exu Tranca Rua da Encruza; 03. Exu da Porteira; 04. Ponto de Exu; 05. Exu das 7 Encruzilhadas; 06. Seu Tuniquinho Exu; 07. Exu Maria Padilha; 08. Pomba-Gira da Praia; 09. Pomba-Gira Cigana; 10. Segura o ponto; 11. Gira das Pomba-Giras; 12. Pomba-Gira na encruza de T.


Saudações a todos! Já faz tempo que eu estou a fim de resenhar esse disco; eu tentei fazê-lo umas duas ou três vezes, mas a inspiração vivia me fugindo e a canseira me abateu... Esse disco aí talvez seja o disco mais popular entre os umbandistas; quase todos têm ele em casa (seja em LP, fita cassete, CD ou MP3), e se não têm, com certeza conhecem a maioria (se não todos) os pontos deste disco e já o ouviram em algum lugar.... É o disco preferido que os terreiros botam pra tocar antes de uma gira de esquerda (pra dar uma ambiência ao lugar - pra quem não sabe, "gira" é o nome que se dá a todos os cultos públicos da umbanda, e uma gira de "esquerda" é um culto umbandista dedicado aos exus e pomba-giras), ou até no meio dela (caso os ogans/alabês/curimbeiros/atabaqueiros - médiuns que se dedicam exclusivamente a tocar os instrumentos musicais sagrados, como os atabaques - faltem aos trabalhos, ou até mesmo para que eles descansem por alguns instantes, enquanto os guias atendem o povo que a eles acorre -tocar atabaque por períodos prolongados de tempo é bastante cansativo, principalmente em dias de calor e principalmente se, como eu, você está aprendendo a tocar o instrumento).


Isso sem contar que os primeiros pontos de Exu e Pomba-Gira que eu aprendi, eu aprendi escutando este disco, que é todo composto de pontos de raiz (como comentei em postagem anterior, os pontos de "raiz" têm inspiração mediúnica direta das entidades sagradas, e estão ligados a todos os aspectos mágicos e esotéricos do culto) Mas, com certeza, o que mais chama atenção no disco é a sua capa, com um diabo de cara vermelha e sorridente surgindo no meio das chamas, tendo a seu lado um tridente, um gato e um galo pretos. Isso sem contar a Pomba-Gira que está do lado, uma bela e sorridente morena, trajando um vestidinho curto vermelho e ornada de jóias... Daí nos remetemos ao velho preconceito que associa a figura de Exu ao diabo, e a de Pomba-Gira à prostituição... Preconceito este que surgiu dentro do próprio seio da religião umbandista e do qual os evangélicos e demais pessoas leigas se servem para atacar a própria religião umbandista!


Antes de mais nada, vale dizer que este preconceito remete ao papel que os exus e as pomba-giras desempenham dentro da religião umbandista; estas entidades estão ligadas ao conhecimento e a guarda dos fundamentos mágicos mais profundos e obscuros do culto umbandista, atuando em áreas mais densas e sombrias do universo astral, onde o poder das demais entidades do panteão umbandista é limitado; em segundo lugar, os exus e pomba-giras, pela mesma razão que eu citei, estão ainda ligados à orientação e/ou solução de problemas relacionados a instâncias socialmente reprimidas da vida humana, como a sexualidade, a afetividade, a ambição material, etc; em terceiro lugar, o preconceito está ligado a postura destas entidades dentro do espaço de culto: não raro elas riem, dançam, bebem e fumam quase que desregradamente (e o médium não volta embriagado do estado de transe; o uso da bebida alcoólica e do fumo não é por vício, vale lembrar, mas está ligado à atuação mágica da entidade que faz uso deles; todas as entidades da umbanda, com exceção das crianças, fazem uso do tabaco e de alguma bebida alcoólica em seus trabalhos), usam de uma linguagem extremamente franca com os presentes no espaço de culto (não raro fazendo uso de palavras de baixo calão). Tudo isto em contraste com a postura rígida e austera de um caboclo, ou a postura passiva, serena e quase imóvel de um preto-velho no seu toco...


E em último lugar, vale dizer que a umbanda, democrática que é, abarca em seu panteão figuras sociais que pertencem a personagens (melhor seria dizer: arquétipos que remontam a figuras sociais) que ocuparam uma posição subalterna dentro da ordem social: o caboclo representa o ameríndio sugado pela colonização européia, o preto-velho representa o negro africano que sofreu com a escravidão, e Exu e Pomba-Gira representam a massa coletiva, tão exposta como fonte de perigo e sedição social, os marginais entre os marginais.... Muito do processo de legitimação da umbanda frente à sociedade passou pela depuração da imagem e do conceito das figuras sagradas de seu panteão, sobretudo a de Exu e de Pomba-Gira... Sobre esta questão, boto aqui alguns excertos do meu TCC, escrito e defendido no ano de 2010:


Tomemos como exemplo o caso dos arquétipos de Exu e Pomba-Gira. Estas entidades, frequentemente tomadas como malignas, sardônicas e amorais, certamente são as entidades mais polêmicas no meio umbandista (o processo de embranquecimento da umbanda passou pela demonização das figuras de Exu e da Pomba-Gira; apesar desta figura estar presente nos cultos públicos da maioria dos terreiros, ainda hoje podem ser encontrados terreiros que, embora possuam os assentamentos materiais de Exu e Pomba-Gira, não promovam cultos à estas entidades, ou que façam somente trabalhos fechados ao público leigo).


(...)Exu e Pomba-Gira foram de certa forma (injustamente) relegados à uma ordem marginal dentro do culto umbandista, por fazerem parte do grupos sociais que não se deixam dobrar pelos formalismos e convenções estabelecidas. E que, de certa forma, remontam à condição marginal da umbanda no cenário religioso e social brasileiro. Nos últimos anos, podemos dizer como que no esforço de “desestigmatizar” socialmente a religião umbandista, as figuras de Exu e Pomba-Gira foram um tanto elididas de seu caráter “subversivo” e foram investidas da mesma função mensageira e primaz do orixá Exu nos candomblés: a função de mensageiro entre os homens e as demais divindades, protetor das encruzilhadas e de guardião dos segredos do culto e das junções dos caminhos. E esta contradição obviamente está presente dentro da música umbandista. Senão, vejamos, nos seguintes fonogramas, essa contradição expressa de forma bem clara. Primeiramente nos debrucemos sobre “Galo Preto” a terceira faixa do LP Saravá Seu Zé Pilintra, da cantora Genimar:


Refrão, repetido duas vezes: Meu galo preto/Do pé amarelo/Canta,meu galo/Só faz o que eu quero/
1ª estrofe: No pingo da meia-noite/Meu galo preto cantou/Ele veio tirar despacho/Que você pra mim botou/(Refrão)
2ª estrofe: Na direita tenho Deus/Porque nele tenho fé/Na esquerda tenho meu galo/Que desmancha tudo com o pé/(refrão)


Como podemos notar, esta faixa, principalmente em seus dois últimos versos, cita o caráter maligno e perigoso de Exu, ao colocar Deus na direita e o “galo preto” na esquerda (no senso comum, trabalhar “na esquerda”, mais do que apenas promover um culto dedicado aos exus e pomba-giras, significa trabalhar com a intenção de provocar “o mal” a outrem). E, como exemplo de transição entre duas visões que os umbandistas tem das entidades da “esquerda”, temos a décima faixa (quarta do lado B) do já citado LP de Sylvano Alves, “Pomba Gira”:


Refrão, repetido duas vezes: Em cada esquina ela está/Olhando você/Pra o que há de mal jamais/Lhe acontecer/
Estrofe única: Tomando champanhe/Fumando cigarro/Ela chega aqui/Vem lhe consultar/E começa a falar/O que vai seguir/Ela tem consigo/Um peito amigo/Pra ajudar você/O que ela falar/Preste atenção/Pra não esquecer/As explicações/De preparações/Pra lhe ajudar/Mas se não ligar/Começa a apanhar/E sem perceber/Ela falou, você criticou/E se vier sofrer/É a Pomba-Gira/Veio observando e começou a bater/(Refrão)


Como podemos notar, a partir desta música, Pomba-Gira pode muito bem ajudar os que a procuram, e sempre estará vigilante com os seus protegidos, mas nunca iria perdoar uma desfeita (uma promessa não paga, por exemplo). Por fim, embora os trabalhos de Seu Sete da Lira sejam considerados trabalhos da quimbanda (ramo religioso afro-brasileiro inteiramente baseado no culto dos exus e das pomba-giras, com certas influências da cabala e da “magia negra” européia), podemos notar em uma das duas claras referências feitas à esta entidade no LP A Brasileiríssima Cacilda de Assis Interpretada por Jorge Ogan, mais precisamente na segunda faixa deste LP, “Assim não dá”; nesta faixa, Seu Sete da Lira é posto como uma entidade que, apesar de ser exu, trabalha somente para o bem:


Refrão, repetido duas vezes: Assim não dá, lelê/Assim não dá/Você bebe pra esquecer/Também bebe pra lembrar/Assim não dá, lelê/Assim não dá/O Seu Sete, Rei da Lira/Só bebe pra trabalhar/
Estrofe única, repetida duas vezes: Onde está Seu Sete?/Tá no canavial/Está trabalhando/Pra nos livrar do mal(refrão)


Nesta música, Seu Sete da Lira bebe (dizem que quando ele estava incorporado em D. Cacilda, sua médium, ele bebia garrafas e mais garrafas de cachaça pura, sem que D. Cacilda voltasse embriagada do estado de transe) não por ser um exu ou um espírito menos evoluído: ele bebe para, em seus trabalhos, “nos livrar do mal”; por esta razão, acreditamos que esta música tenta mostrar a entidade Exu livre de seu caráter “subversivo”, associando-a à “prática do bem caritativo”.


Pois bem, deixando de lado as polêmicas, esse disco é bonzinho, sem ser genial... O bando que gravou esse disco gravou ainda outros, dedicados aos pretos-velhos, as crianças, a Iansã e a Oxum, sob o nome "Na gira de/dos". Enfim, tem o mérito de ser um bom disco para conhecimento dos leigos em música umbandista e é um disco bem legal para se presentear evangélicos (e vê-los escandalizados soltando esconjuros por isso). Todas as obras que foram citadas nos trechos do meu TCC já foram resenhadas aqui neste blog e estão disponíveis para download no blog "Discos de Umbanda" (vá na minha lista de blogs favoritos, seu preguiçoso!) ... E agora me dêem licenca que vou tomar a minha dose diária de Diazepan, junto um gole de chá de fita!


Para ouvir a faixa 12, "Pomba-Gira na Encruza de T", é só dar o play nesse vídeo aí embaixo:

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Sobre a "palmada pedagógica"




Saudações a todos! Como já deve ser do conhecimento de todos, há algum tempo está correndo no Congresso Nacional uma proposta de nova redação do artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que atualmente diz:


"É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor"


Pois bem, a proposta em questão permite, entre outras coisas, incluir nesse artigo o castigo físico (apelidado de "palmada pedagógica") como um dos tratamentos dos quais devemos manter a criança e o adolescente resguardados. Como esta questão é muito polêmica, uma vez que não conseguimos enxergar a educação moral de uma criança sem o uso de pequenos castigos físicos, eu creio que ela exige um posicionamento público dos que se julgam instruídos, ou daqueles que, como eu, mantém blogs onde lançam ao mundo suas idéias sobre o mundo e sobre o universo...


Mas então vamos aos fatos: qualquer pessoa com um mínimo de discernimento sabe que vivemos numa sociedade onde abusos e violências de toda espécie contra crianças e adolescentes (incluindo-se aí violências e abusos físicos, psicológicos e sexuais), longe de serem patológicas exceções partidas de gente sociopata, ainda são a regra no trato com crianças e adolescentes; que essa terrinha de meu Deus está repleto de pessoas que botam filhos a rodo no mundo, mesmo sem ter a menor condição de cuidar sequer de um jabuti esclerosado preso em um chiqueiro; que ainda grassa nesse mundo a idéia retrógrada de que as crianças e adolescentes, mais do que seres humanos em fase de desenvolvimento, são propriedade privada e fonte de realização pessoal de quem os pôs no mundo; que, no senso comum, ser uma criança e/ou um adolescente tido como "bom" não é necessariamente ser uma pessoa que age com justiça, ética, solicitude e generosidade, mas sim ser alguém que não tem vontade própria, que se porta nos ambientes como se fosse um luluzinho de madame e que obedece cegamente seus progenitores... Nesse cenário, já da para se notar que a criança e o adolescente estão em clara desvantagem...


E quando nos damos conta disso, vemos que a proposição da mudança legal que citamos acima vem para tentar coibir estes abusos e estes preconceitos. E do meu lado, presenciei e vivi situações em que a "palmada pedagógica" não fez nada de bom... Vamos a uma delas:


Em um belo domingo de páscoa, eu, meu irmão e meus pais estávamos (como quase sempre fizemos) reunidos na casa de minha avó, mãe de meu pai... Em determinado momento, eu e meu irmão (eu já era um menino de 8 anos e meu irmão tinha mais ou menos 3 anos) estávamos sozinhos nos quartos da casa (meus avós por parte de pai moram em uma pequena casinha de alvenaria assobradada, em uma das muitas vielas do Alto de Vila Maria - e ali, quase todas as vielas estão em forma de grandes escadarias de concreto; os quartos de dormir estão na parte de cima, um para meus avós e outro onde meu pai e minha tia dormiam quando eram solteiros - hoje usado para "hóspedes eventuais", isto é, eu, meu irmão, meu pai, minha prima e minha tia).


Em dado momento, meu irmão se desviou de mim por uns instantes pra ficar ao lado de minha mãe que estava no quarto contíguo falando ao telefone... Naquele tempo, meus avós guardavam toda espécie de tranqueiras em cima do guarda-roupa, acondicionadas em caixas de sapato, e eu sempre fui curioso pra saber o que havia guardado dentro dessas caixas (quando eu perguntava, sempre recebia respostas evasivas e ordens para não mexer nas caixas, com as quais nunca me conformei; hoje vejo que talvez foi por isso que eu um dia escolhi estudar História - embora já esteja um pouco arrependido, mas isso é assunto pra outro post - pois eu nunca me deixei engabelar por respostas prontas aos meus questionamentos, vivia fuçando gavetas, caixas, documentos e pertences alheios para saber de seu conteúdo). Como eu ainda não era alto o suficiente para alcançar a parte de cima do guarda-roupa, eu subi por uma pequena estante que estava do lado...


E logo descobri a razão das evasivas: em uma pequena caixa de papelão havia uma pequena garrucha calibre 22, daquela de dois tiros, um em cada cano (arma bastante antiquada, mas ainda hoje bem conservada). No instante em que eu peguei a arma, fui espertado pelo barulho de alguém subindo a escada e incontinenti deixei a arma em cima de uma pasta de plástico, descendo da estante como se nada houvesse ocorrido...Alguns minutos depois, estava eu brincando com outras crianças na viela quando sou chamado pra dentro de casa. A arma havia escorregado da pasta e caído no chão do quarto. O meu irmão estava perto e quase a pegou, mas meu pai, também espertado pelo barulho desconhecido de algo caindo no chão (esta é uma neurose da minha família, principalmente de meu pai), também foi ao mesmo tempo ver o que era e impediu meu irmão de pegar a arma.


Vale lembrar que ela estava carregada e poderia ter perfeitamente disparado ao cair no chão (e alvejado meu irmão que estava perto) ou meu irmão poderia tê-la pego e igualmente disparado a arma contra si ou contra quem tivesse a infelicidade de estar por perto. Certamente meu pai compreendeu na hora que eu estava envolvido nisso e me chamou ali para dar uma bronca... Em determinado momento, ele me pegou pela orelha esquerda e me fez descer a escada me pegando por essa orelha... Quando eu era moleque eu já era um chorão por natureza, imagine se isso não foi o suficiente pra eu começar a chorar como uma gazela espavorida. E só aí eu recebi a bronca, intervalada por alguns croques no alto da cabeça. E o que exasperou meu pai foi o fato de poder ter-se havido uma tragédia por uma negligência minha... O sofrimento só parou por causa da intervenção de minha avó para acalmar os ânimos (ah, minha santa avó, que não é apenas a mãe de meu pai; é uma divindade acima do bem e do mal - como todas as boas avós - e acima da ética e das leis humanas! O que seria de mim neste mundo cruel se não fosse esta divindade, que ao baixar na terra se traveste na figura de uma humilde e miúda senhora vinda do interior??? Eu não quero nem pensar, meus caros!)


E quando vamos defender a "palmada pedagógica", nos perguntamos: O que uma criança de 8 anos pode fazer de tão grave que mereça ser arrastada pelas orelhas até um canto qualquer??? Ou que mereça ser surrada com cintos de couro, com chinelos, revistas dobradas, fios elétricos e outros objetos mais??? Esse e outros episódios contribuíram para que, durante a minha infância e a minha adolescência, eu mais temesse do que amasse meu pai. Não estou querendo dizer que sou um traumatizado por causa disso, ou que meu pai era um carrasco destemperado que sentia prazer em bater nos filhos (muito pelo contrário, ele foi e ainda é um pai bastante prestativo e dedicado, que nunca descuidou de seus dois filhos, mas, assim como eu, todos os homens de minha família são ou dão evidências claras de ser de Ogum, e como tal são pessoas irascíveis por natureza, teimosas e que não gostam de e não aceitam ser contrariadas em nada - este trecho em parêntesis eu inseri sem demagogia acalmadora de ânimos, rsrsrs). Na hora destes acontecimentos, não foi nada agradável sentir dor física e dor moral simultaneamente...


Não quero com isso me vitimizar e me fazer de pobre coitado; afinal de contas, sou já um homem adulto e maduro o suficiente pra não ficar mais remoendo mágoas e me debatendo com o que me aconteceu de ruim no passado. Sinceramente falando, tenho mais o que fazer do que praticar o coitadismo... Pois bem, agora vamos ao outro lado da questão... Não dá pra negar que vivemos já há algum tempo numa era onde o peso da influência familiar na educação de uma pessoa tem sido reduzido, ou, pelo menos, tem sido relegado a um segundo plano... Hoje em dia, muito mais do que a família, a televisão, a internet, os colegas de escola ou da rua tem muito mais valor pra formar a opinião e o caráter de uma pessoa do que sua família. E, ao que parece, a família tem aceitado relegar o seu papel a estas instituições que eu citei...


E quem trabalha ou já trabalhou dentro de um ambiente escolar (me refiro a todas as escolas, sejam elas públicas ou particulares; a superioridade da maioria das particulares sobre as públicas consiste apenas em saber varrer mais rápido os seus problemas pra baixo do tapete, antes que haja tempo de alguém com mais argúcia notá-los. Se em cada estado houverem dez instituições de ensino privado de competência indiscutível, já é muito) já deve ter notado os efeitos disso: o bullying, a indisciplina, a grosseria contra professores e muitos outros problemas campeiam no ambiente escolar. E quase todos eles estão de alguma forma relacionados a negligência familiar no trato com as crianças, uma vez que não cabe à escola (tanto eticamente como legalmente) a educação moral de quem quer que seja... Quase sempre, as crianças e adolescentes mais problemáticos dentro do ambiente escolar não são problemáticos porque possuam uma maldade e/ou falhas de caráter inatas, mas sim porque precisam de alguém que puxe por eles, que lhes dê mais do que água, alimento, roupas e abrigo e que no devido momento saibam dar umas palmadas leves porém decididas...


Entendamos o seguinte: todos nós quando crianças e/ou adolescentes fizemos alguma peraltice, ou geramos alguma preocupação ou dissabor aos nossos responsáveis; o mesmo se aplica as crianças/adolescentes de hoje e se aplicará a todas as crianças e adolescentes vindouras... Mais do que nunca, é necessário planejar seriamente quando ou se teremos filhos, e se os tivermos que eles definitivamente não sejam apenas fatores de nossa realização pessoal e muito menos bodes expiatórios onde possamos descarregar toda a frustração, raiva e canseira diárias... Muito mais do que castigos físicos, creio que a privação temporária de coisas que a garotada goste (televisão, videogame, computador, sair pra brincar na rua ou passear com os amigos, etc.), ou mesmo fazer com que a criança gaste parte de seu tempo livre em atividades paralelas (leitura, esportes, por exemplo) é muito mais eficiente pra conter os mais rebeldes. Se nada disso adiantar (e acredito que isso seja raro), recorremos as palmadas, beliscões e puxões de orelha, mas sabendo que se passarmos da dose, o castigo produz o efeito contrário ao desejado; só um desequlibrado sente prazer em provocar sofrimento físico nos próprios filhos. Orientação psicológica para os que insistem em não se emendar também é de grande valia (tenho exemplos em minha família que me levam a crer nisto)...


Quem sabe um dia, o governo não estabeleça uma cota diária e/ou semanal de quantas palmadas, beliscões, puxões de orelha, croques e outas coisas quejandas uma criança/adolescente pode receber, relacionando isso aos "delitos" e estabelecendo "penas": dano aos objetos alheios, dois tapas na bunda; escândalo em lugares públicos, um beliscão aplicado discretamente pra que a criança volte a si, e por aí vai... E botar o povo pra fiscalizar o cumprimento disso! Se até o Sarney teve dedicados fiscais populares nos tempos do Plano Cruzado, e se temos agentes pra ver se não criamos pernilongos dentro de casa (por causa da dengue), porque não poderíamos ter fiscais para isso???? (ironia comeu solta neste parágrafo)


Agora me dêem licença que eu vou tomar a minha dose de chá de fita!

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Um breve sobre a homofobia




Saudações a todos! Como vocês já devem estar sabendo, existe um intenso debate público que procura fazer com que o machismo e a homofobia não só sejam criminalizados como deixem de ser comportamentos considerados naturais socialmente (No bojo desta questão se discutem ainda direitos civis, vejam bem, DIREITOS CIVIS - num país que se julga no caminho do desenvolvimento isso soa até estranho que hajam pessoas que não gozem de tais direitos -  para a população LGBT, como o uso do "nome de guerra" nos documentos pessoais - no caso dos transexuais -  e o casamento homoafetivo)... E entre as ações concretas desta luta, estão a realização de eventos como a Marcha das Vadias e a Parada do Orgulho LGBT em diversas cidades do país, bem como a pressão para que a Lei Maria da Penha seja aplicada com mais eficácia e rigor, e a pressão pra que seja aprovado o quanto antes o famoso PLC 122, que torna crime quaisquer práticas homofóbicas (não sei se o projeto pretende dar uma nova redação a Lei 7716 - que define os crimes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional - incluindo aí a discriminação de gênero ou de "orientação sexual", ou se pretende criar uma lei exclusiva pra tratar disso). 


Como podemos ver, são temas bastante polêmicos, pois é difícil admitir que esta é uma sociedade machista (e que, por extensão, nós somos machistas), e que se você não for hétero você corre o risco de ser espancado até a morte na rua se for visto(a) junto com seu(sua) companheiro(a), não contando a pressão da "bancada religiosa" (grupo de parlamentares evangélicos; a definição é pensada para membros do Congresso Nacional que pertençam a tal grupo, mas pode se aplicar a qualquer casa legislativa deste país. Em qualquer uma delas - seja nas assembléias estaduais ou nas câmaras de vereadores -  é difícil não haver um grupo de parlamentares constituído por lideranças evangélicas) para que estes e outros temas não sejam sequer discutidos... Dadas estas questões (que apresentei de forma bastante superficial), acreditamos que não devemos nos abster do debate público... 


E vamos expor nossa opinião com um comentário que fiz numa postagem de um de meus blogs favoritos: http://miocitos.wordpress.com/  (visitem- no, meus raros leitores; tanto pela autora - uma mulher belíssima, inteligente e que escreve muito bem sobre os mais diversos assuntos; claro que uma pessoa com tais predicados só poderia estar estudando História -  bem como pelo conteúdo do blog - e, não custa lembrar, em retribuição ao jabá grátis que ela faz deste meu blogzinho humilde, que na mais deslavada das ousadias já está há quase três anos no ar): 


Não é incrível que vivamos num mundo onde nossos papéis sociais, nossa vestimenta e nosso comportamento sejam de certa forma definidos por aquilo que nós temos no meio das pernas??? Ou que nossa segurança e nossa aceitação social seja definida por aquilo que gostamos de fazer entre quatro paredes??? Basicamente, é nesse cenário que implica a aceitação passiva do machismo e da homofobia…


Eu não vou ser hipócrita e negar que para mim, ver dois homens se beijando e/ou em carícias íntimas ainda é algo que mexe comigo de maneira um tanto negativa, mas eu encaro a questão pelo seguinte prisma: não podemos, por exemplo, de maneira alguma admitir que pessoas estejam morrendo nas ruas da sétima maior metrópole deste planeta (São Paulo) de tanto apanhar apenas por causa da sua expressão sexual, ou que algumas delas sofram tanto por causa da falta de aceitação de seu gênero que vejam o suicídio como única alternativa de escape… E tudo isso em um lugar onde ocorre anualmente o maior evento mundial do orgulho homoafetivo e transgênero…


Como sou umbandista, sei muito bem o que é pertencer a uma minoria social que não goza de aceitação e legitimidade plena; todos os dias, temos que conviver com olhares desconfiados, perguntas indiscretas, manifestações idiotas de ignorância quanto a minha crença, fora as intermináveis discussões que tenho com a minha família (quase todos são católicos praticantes e atuantes dentro de suas comunidades, e eu também o fui durante boa parte de minha vida) que não aceita o fato de eu ter mudado tão bruscamente de religião…


Não que tudo isso que acabo de relatar seja motivo de opróbrio para mim, ou que eu me sinta desiludido com a minha religião (muito pelo contrário, no último 25 de abril, fizeram 5 anos que frequento a umbanda; no dia 03 deste mês, fizeram 2 anos que fui inciado nessa religião através do batismo e no dia 27 de setembro se completarão 2 anos que faço parte da curimba- como tocador de atabaque- do templo no qual fui iniciado. E não me arrependo de absolutamente nada que tenha feito na ou pela religião umbandista).. Mas, como diria esse trecho de filme que, usando do talento de dois dos maiores atores brasileiros da atualidade (na minha modesta opinião), solta a seguinte frase, a 1 minuto e 14 segundos de vídeo:





“Suportar é a lei da minha raça, tá ligado?" (eu diria da nossa, posto que isso se aplica a todas as minorias)... E esse é justamente o problema: até quando vamos ter que suportar todas as vexações, sejamos nós negros, mulheres, homossexuais, transgêneros, favelados ou umbandistas??? Não aquentamos mais, por isso, está mais do que na hora de mostrarmos a nossa cara e mandar uma banana (acho melhor o dedo do meio) pra essa sociedade que diz que é bom ser diferente, mas não muito…


Ah, o post em questão é este aqui: http://miocitos.wordpress.com/2012/06/15/quando-a-homofobia-vem-dos-gays/ Um saravá pra todos!

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Gira da Umbanda - 1979


01. Exaltação a Exu; 02. Oxossi das Sete Giras; 03. Ponto do Caboclo Araúna; 04. Ponto do Caboclo do Sol e da Lua; 05. Ponto do Caboclo Urubá; 06. Ponto do Caboclo das Três Montanhas; 07. Ponto do Preto-Velho Pai Caetano; 08. Ponto do Vovô Sete Estrelas; 09. Ponto de Xangõ Alafim; 10. Ponto de Xangô Jurema; 11. Ponto de Crispim e Crispiniano; 12. Ponto de Ogum.


Saudações a todos! Já faz bastante tempo que não comento música aqui nesse blog, e vou retornar a fazê-lo com um dos discos mais fodásticos do meu acervo (e um dos meus preferidos), o LP "Gira da Umbanda"... E eu digo  "fodástico" porque de todas as obras de música umbandista que tenho comigo e das que tive a oportunidade de ouvir, não conheco uma que seja tão alegre, tão espontânea, tão bem-arranjada e tão emocionante como este  disco que ora comento...




Esta obra foi uma iniciativa dos médiuns da Tenda Espírita São Sebastião, um templo umbandista da cidade do Rio de Janeiro fundado na década de 50 do século passado (que, segundo a contracapa do LP, possuía centenas de sócios, um orador oficial e até uma biblioteca; não pude saber se este templo ainda existe e/ou está em funcionamento. Se alguém que passar por aqui souber de algo, por favor nos fale!), e contém pontos de louvação dedicados as mais diversas entidade, algumas das quais atuavam no citado templo..


(Vale a pena lembrar: os cânticos sagrados da umbanda, chamados de "pontos", são denominados como "de raiz" ou "de louvação"; os pontos de raiz são ditados pelas entidades espirituais e estão ligados aos aspectos mágicos do culto, tendo o poder de criar realidades, movimentar energias, invocar entidades e/ou fazer com que elas retornem ao mundo espiritual, bem como marcar todos os atos de culto umbandista, que em todas as suas partes começam e terminam com cânticos apropriados; os pontos de louvação podem ser recebidos ou não em inspiração mediúnica, e como o seu nome diz, tem o intuito de louvar as entidades sagradas aos quais se dirigem, sem o poder de entrar na parte mágica do culto. Há quem afirme que os pontos de raiz e de louvação com inspiração mediúnica estão se tornando mais raros, tendo sído substituídos por músicas de inspiração profana - mais notadamente sambas - geralmente lançados para concorrer em festivais públicos de música umbandista; há quem afirme a negatividade deste proceder, uma vez que os fundamentos mágicos da religião, presentes em sua música, estariam correndo o risco de se perderem por completo em poucas gerações)


Pois bem, a obra em questão, a bem dizer, não é uma obra só de música umbandista, é um LP com pontos de louvação (provavelmente exclusivos do templo que os gravou; não sabemos se são louvações de inspiração mediúnica ou profana. Embora todas as faixas tenham autoria indicada, pode ser que isso seja apenas um artifício para o recebimento de direitos de execução da obra, uma vez que possivelmente este disco foi lançado para ajudar o templo a se manter financeiramente, prática bastante comum em outros tempos e que rendeu peças geniais da música sacra brasileira!), retraduzidos como sambas e choros com excelente acompanhamento instrumental: um violão, um cavaquinho e um bandolim tocados por músicos competentes (podem até ser que tivessem sido filhos da casa, ou apenas frequentadores dela), bem como a percussão de todas as faixas (o mesmo que foi dito do pessoal das cordas): nas faixas 05 e 09 podemos ouvir distintamente tamborins tocando, e a faixa 08 é uma belíssimo e comovente choro, com o bandolim castigando o tempo inteiro, em eloquente diálogo com o violão...


Enfim, é um disco que sinceramente os umbandistas (e também todos aqueles que gostam de um bom samba e de um bom chorinho) devem escutar pelo menos uma vez na vida, pois a obra que ora comentamos é um singelo retrato de como a religião umbandista é rica musicalmente e culturalmente e de como é bom pertencer a esta religião e comungar, ainda que seja de um pedacinho só, dessa riqueza... E um aviso para os adeptos do "copyleft" de plantão: sim, eu tenho esse disco comigo, mas ainda não o digitalizei... Portanto, não me atormentem atrás desta obra, e a cópia que tenho dela NÃO está a venda! Quando for possível, e isto exige uma fração considerável de tempo e sobretudo de dinheiro que no momento não disponho, eu digitalizarei meus LPs, converterei essa versão digital para MP3 e jogo na web pra que esteja disponível nesse lugar: http://www.discosdeumbanda.blogspot.com/; ali já tem alguma coisa que eu pude disponibilizar de minha modesta coleção particular... É só guentar a mão, ouvintes ansiosos!


Para ouvir a faixa 04, "Ponto do Caboclo Araúna", assista esse vídeo aqui (que tive a sorte de achar por acaso no YouTube):