quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Vº Festival Nacional de Cantigas de Umbanda (1975), ou Isto é que é Umbanda (1977)


Capa original do disco


Capa da reedição, em 1977


01.Hora de Rezar; 02.Pedra Lírio de Xangô; 03.Flores de Obaluaê; 04.O mundo encantado de Janaína; 05.O canto de Tupi; 06.Irôco; 07.Ressurreição; 08.Toada de Boiadeiro; 09.Vovó Chica; 10.Festa do Caboclo Folha Verde; 11.Venham as Crianças; 12.Prece a Tupã.



Saudações a todos! Vamos de novo atacar com aquilo que mais sabemos fazer aqui nesse blog: resenhas cagadas e mequetrefes sobre obras bem feitas e agradáveis. E dessa vez vamos com uma obra importante para a música umbandista: o LP com as cantigas vencedoras do quinto festival nacional de cantigas de Umbanda, realizado em 1975 (aliás, não sei porque dizer "nacional", uma vez que não só esses festivais eram realizados no Rio de Janeiro como todos os templos vencedores eram de lá)...


Mas afinal, o que eram esses festivais??? Eles tinham o objetivo de promover não só uma competição musical entre os templos que participassem desse evento (e onde as cantigas mais apreciadas seriam gravadas em disco), mas de ser um momento onde o maior número possível de comunidades religiosas estivessem reunidas, compartilhando os seus saberes musicais... Vale lembrar aqui que a música umbandista pode ser dividida em dois cortes: as cantigas de "raiz" e as cantigas de "louvação". Já expliquei aqui em outra postagem a diferença entre elas, mas não me traz cansaço explicar que as cantigas de "raiz" são ditadas diretamente pelas entidades espirituais e possuem um fundamento mágico-religioso por trás delas, enquanto as de louvação, apesar de serem inspiradas pelas entidades, e tem o intuito de, como diz sua designação, apenas de louvar e saudar as entidades a que se dirigem. E há ainda as composições profanas que contam apenas com o gênio de seu autor, mas pra falar das coisas do santo em música profana é preciso cuidado extremo e um zeloso respeito pelas coisas sagradas...


Zelo este que tem faltado nos atuais festivais de música umbandista, onde as composições inspiradas pelo mundo astral ou mesmo aquelas feitas profanamente com esmero tem perdido espaço para sambas-enredo ruins onde dão um jeito de enfiar no meio os nomes das entidades... E o que é pior, os caras pensam que estão louvando o orixá ou o guia espiritual, mas estão sendo ofensivos com eles, seja, por exemplo dizendo que tomarão uma cerveja com Zé Pelintra num bar, ou que Exu desceu do morro pra trazer maconha pro pessoal "dar um pega" no terreiro... Não digo nada das implicações espirituais que isso traz ao levarem tais composições para dentro de um espaço religioso, mas sim falo do completo mau gosto das músicas... Vemos os CDs de um "Atabaque de Ouro" da vida e das 20 faixas que normalmente o CD tem, não podemos aproveitar mais do que três... Além dos problemas que eu citei, há dois que eu considero bastante graves:


O primeiro é o fato de que os atuais festivais perderam o sentido que originalmente tinham, de reunir numa competição o maior número possível de comunidades religiosas, que bem ou mal de alguma forma trocavam seus saberes musicais e religiosos, ao apresentar seus pontos na competição. O que vemos hoje em dia é uma disputa de vaidades entre escolas de curimba e alguns templos mais famosos, como se fosse um desfile de escolas de samba. E onde os vencedores quase sempre são os mesmos, e onde o que é valorizado é apenas a habilidade artística de quem está tocando, cantando e/ou compondo, e não a mensagem espiritual que ele está querendo passar. O segundo problema é o fato de que grande parte da tradição musical umbandista está se perdendo, e o fundamento religioso contido na música é de primordial importância para o ofício religioso umbandista e até mesmo para o funcionamento e a existência do templo enquanto comunidade religiosa.... Até me imagino já velho (se eu  alcançar a velhice) sendo interpelado pelos meus netos perguntando: "Vô, como que é aquele ponto de preto-velho que o senhor canta de vez em quando?"E lá irei eu puxar pela memória e cantar aquela velha cantiga há muito tempo esquecida...


E este disco que resenho é um dos últimos festivais "primitivos", com cantigas de louvação ainda hoje usadas dentro dos templos, como as dedicadas a Xangô e a Obaluaiê. Não chega a ser um disco genial, mas é um disco que nos faz desejar que este espirito de integração religiosa retorne aos festivais de música umbandista... Vamos parar por aqui que pra escrever isso foi um parto de quadrigêmeos...


Para ouvir a faixa 10, "Festa do Caboclo Folha Verde", é só clicar no vídeo aí embaixo:



quarta-feira, 10 de outubro de 2012

As desilusões da vida acadêmica


Eis aí a coisa mais acadêmica que tenho feito de uns tempos pra cá: aumentando meus conhecimentos sobre música umbandista...  Esse LP aí, apesar de ser particularmente raro e cobiçado por colecionadores (se você é um e viu essa foto, aviso que ele NÃO está à venda!), não é bonito nem genial; é uma coletânea de músicas de inspiração umbandista que o J.B. de Carvalho (famoso cantor da Época de Ouro da MPB) lançou anteriormente em discos de 78 rotações.... Mas o autor tem o mérito de ter sido um dos primeiros a fazer sucesso na gravação de temas umbandistas (paralelamente a uma carreira profana de relativo sucesso), e de ter sido pioneiro em demonstrar a ponte existente entre a música popular brasileira e as religiões de matriz africana....


  
Um dia desses, eu falei a alguém que estava (e estou) desiludido com a História... Justo agora, que estou a um passo de concluir minha licenciatura… Falei a este alguém (e ainda comungo um pouco desse pensamento) que, de certa forma, a História é uma ciência sem futuro, porque quase nunca conjetura sobre o futuro, mas sim sobre o passado através da visão do presente, dentro de um corte temporal determinado… Que, enquanto ciência, ela ainda está muito presa dentro de sua metodologia e de seus fetiches; aquela coisa de que Bloch e Febvre puseram há 80 e poucos anos atrás no editorial do primeiro número da revista dos Annales, de “levantar-se contra os temíveis esquemas historiográficos”, ainda está por se fazer dentro da historiografia… Ainda existe, dentro da ciência histórica, uma dificuldade (pra não dizer resistência teimosa) muito grande pra se lidar com fontes não-escritas, embora se fale muito da importância de se usar a tradição oral, ou mesmo os elementos da cultura material e até mesmo imaterial enquanto fontes históricas. Isso sem contar que o processo que transformou a História numa ciência independente das demais ciências humanas praticamente cortou as possibilidades de diálogo da História com as demais ciências...


Pelo amor de Deus, manos meus, eu não quero com isso dizer que a ciência histórica e o estudar História não são relevantes! Muito pelo contrário; é fundamental admitir antes de mais nada que a humanidade e as sociedades são fruto de um processo histórico, e que só puderam existir e se desenvolver enquanto investidas de um caráter histórico e de condicionantes históricas... Entretanto, por essas razões que citei (e por muitas outras mais), vejo que a História, como futuro acadêmico e de pesquisa, não dá mais pra mim, e isso eu percebi quando estava escrevendo meu tcc…


Que, como certamente eu já devo ter falado pelo menos alguns milhares de vezes (e não me traz cansaço repetir isso), versou sobre a música umbandista na ótica do patrimônio cultural imaterial (uma disciplina ainda nova dentro da História). O único grande trabalho de pesquisa que fiz em toda a minha vida foi alvo de descrédito e chacota (muito embora eu tenha recebido um 10 de meu orientador – de 40 trabalhos, só 5 levaram um 10 do orientador; tive colegas que se dedicaram a pesquisa de um tema desde o começo da graduação com um único orientador e não levou esta nota - não direi quem são nem o que estavam pesquisando porque senão serei emasculado em praça pública! - Pelo menos de uma coisa que fiz na vida eu tenho o direito de me orgulhar, não é mesmo???) apenas porque meu trabalho não está definido dentro de um corte temporal preciso, e nem se prende nas velhas amarras e fetiches da historiografia….  E, principalmente, pela falta de uso de fontes escritas... Mas ora, se o trabalho está baseado nas problemáticas da cultura imaterial, e está usando como fontes elementos da cultura imaterial, como ele pode ser baseado em documentos escritos??? Tá certo que utilizamos obras escritas, mas apenas pra fundamentarmos as premissas levantadas pela nossa pesquisa, e não para serem nossas fontes!


Mas vale confessar, entretanto, que esta não foi minha única desilusão acadêmica: a primeira foi logo no primeiro semestre da licenciatura, quando descobri que filosofia, essencialmente, pouco ou nada tem a ver com aquilo que fazemos numa acalorada conversa de bar entre amigos, onde conjeturamos sobre os mais diversos assuntos (Isto é, que, a rigor, não existem "filósofos de botequim", e muito menos "filosofia de bar"). Sim, a filosofia ainda tem este sentido de investigação/especulação sobre a realidade universal, mas ela está muito mais preocupada em analisar os argumentos e as teorias sob o crivo da lógica (nesse sentido, qualquer teoria, mesmo sendo a mais reacionária, é perfeitamente válida se estiver encadeada dentro dos princípios da lógica - que, como sabemos, é um ramo da matemática) e de organizar e delimitar tudo em categorias definíveis (por exemplo: se eu usar o termo "belo", devo explicitar que conceito de "belo" eu estou usando. Se é o "belo" de Aristóteles, de algum pensador humanista do Renascimento, etc.). É espantoso saber que a mesma Filosofia que inicialmente pretendeu abarcar todos os ramos do conhecimento humano é uma das principais responsáveis pela divisão deste mesmo conhecimento em áreas específicas e separadas entre si...


E acabo de sofrer mais um baque, ao descobrir que, por uma exigência burocrática, não poderei iniciar minha pós-graduação imediatamente após o término de minha licenciatura... Eu fui, por curiosidade, visitar a página do programa de pós-graduação em Sociologia da USP (que, para mim, tem linhas de pesquisa que vão de acordo com meus interesses acadêmicos). E, ao ver o edital do último processo seletivo para o mestrado nesse programa, descubro que o número de vagas para as linhas de pesquisa que me interessavam  (Sociologia da Religião) é restrito (2 professores, uma vaga pra cada um), e que há uma prova de proficiência de línguas na qual é exigida uma tradução precisa e um texto no idioma escolhido pelos candidatos (inglês, francês ou alemão), não sendo permitidas "traduções livres"... Pois bem, é bem verdade que, numa pós-graduação, você não pode deixar de ler uma obra ou um autor importante apenas porque esta obra ou o autor não foram traduzidos ainda para o português (ou porque a tradução está porca, por não ter sido feita por um especialista na área ou no autor), mas o que significaria exigir uma tradução precisa??? Tá certo que o meu inglês não é bom, mas eu creio que consigo ler com um mínimo de segurança qualquer texto, ainda que eu precise ser acompanhado por dicionários ao meu lado (o "comum" e o de verbos), mas uma tradução exata e precisa.... Os caras estão dispensando dessa prova quem apresente certificados de proficiência, mas os testes para obtê-los são caros pra cacete...


Se bem que todo mundo sabe que, oficiosamente, os lambe-saco de professor, preparados desde cedo por estes para se dedicar à pesquisa, recebem um "tratamento diferenciado" na prova de proficiência, ou na entrevista com a banca... Puxar saco de quem quer que seja, seja qual for o motivo, é algo que eu tenho como profundamente execrável e digno de feroz censura. E, a rigor, o cenário é este: os puxa-sacos são preparados dede o começo da graduação pra se dedicar a pesquisa, e o resto é preparado pra consumir sua vida , sua saúde e sua inteligência no magistério do ensino básico... E, quando fui ver quais eram as pesquisas que os alunos do programa estão desenvolvendo, fui assaltado da seguinte dúvida quanto a algumas coisas que pude ver: "Meu Deus, será possível que essa gente está recebendo dinheiro público pra fazer durante 3, 4 anos, uma pesquisa porca sobre um tema que não tem a menor relevância social, ou que pouco contribuiria para a renovação temática e metodológica da área??? (Espero estar enganado)....


Enfim, é relativamente duro constatar que aquilo que você pensava que seria a grande chance da sua vida, em termos de crescimento e progresso pessoal e social, está se tornando na maior decepção dela... Ainda vejo um futuro para a História como disciplina do ensino básico, e ainda acredito que vou dar uma de self-made-man e conseguir heroicamente saltar por cima de todos os obstáculos que se impuserem aos meus sonhos de um futuro  acadêmico promissor. Quem sabe tudo esteja como na seguinte frase de Amós Oz, celebre escritor israelense de que compartilhei um texto aqui nesse blog: "Tudo que está baseado apenas em um sonho fatalmente tende a se tornar uma cruel decepção"...

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Poema em linha reta, por Fernando Pessoa (no alter-ego de Álvaro de Campos)

Álvaro de Campos em espelho, na visão de Almada Negreiros (multiartista português)


(Os negritos são meus)


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.