sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Umas palavrinhas sobre religião



"Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe" - Dunus Escoto, teólogo que viveu entre os séculos XII e XIV.


Saudações a todos! Vou iniciar este post falando uma verdade inconveniente, e que venho guardando há muito tempo: apesar de ter uma religiosidade, a minha fé no divino não é totalmente incondicional. Eu ainda creio, mas esta fé não é completamente cega e desprendida; ela precisa um pouco de fundamentos minimamente tangíveis para se sustentar...


No meu caso, eu tive algumas evidências: eu posso ver a manifestação visível das entidades que cultuo; posso conversar com elas, não de forma metafísica, mas naturalmente, do mesmo jeito que conversaria com um amigo num bar ou como estou agora aqui me comunicando através deste blog; pude ver alguns efeitos físicos inacreditáveis da manifestação das divindades (acredito que esse seja o ponto mais delicado, porque eu tento analisar racionalmente os fatos, mas até agora vejo que não há sugestão capaz de me dizer que é possível alguém segurar achas de carvão em brasa/apagar um charuto no céu de sua boca e não se queimar ou pelo menos ficar com alguma marca visível, ou que é igualmente possível alguém beber em poucas horas dois litros de pinga e não correr um sério risco de vida). Mas, afinal de contas, como estas evidências não podem ser controladas, isoladas e reproduzidas à vontade em um laboratório, com resultados invariáveis, elas não são insofismáveis, e assim seguimos a vida...


Pelo menos até o presente momento, no (até agora) restrito círculo de pessoas com quem convivo, lido e me comunico, há católicos, evangélicos, ateus, agnósticos, umbandistas e até mesmo budistas, não foram tantas as vezes em que fui pessoalmente achincalhado ou diminuído por causa de minha religião, e nas (algumas) vezes em que isto aconteceu a coisa não partiu de ninguém ateu ou agnóstico; inclusive, até onde eu pude notar, as manifestações mais eloquentes de apoio e de respeito à minha crença partiram, em sua maioria, de pessoas que não a comungam, não só da minha crença como de crença religiosa alguma. Mas ultimamente, tem ganhado força um papo de que a religião (a coisa é mais direcionada ao cristianismo, mas pode se aplicar a qualquer crença, mesmo à uma crença politeísta) é perniciosa ao ser humano, impedindo o pensamento crítico e racional... Enfim, que se você é de alguma foma religioso ou espiritualizado, você é um babaca obtuso, se comparado a quem é ateu...


Em primeiro lugar, vamos deixar claro que ninguém gosta de ser visto como ou ser chamado de babaca; as pessoas podem tolerar as mais radicais revoluções no que for, mas se estas revoluções mexerem em um milímetro na superestrutura fundamentadora de seu cotidiano e de sua vida privada, elas começam a resistir e a chiar. E em segundo lugar, acreditamos que a religião, em si, é como a física e a química: não é algo bom nem ruim em si... 


Durante todo o período colonial e ainda por um um bom par de décadas depois da independência, talvez mesmo até alguns anos depois da proclamação da república, ordens religiosas católicas (tanto regulares como leigas) foram as criadoras e mantenedoras das únicas entidades prestadoras de assistência social que existiam no Brasil, numa época em que inexistiam políticas públicas deste gênero. Mas a Igreja também tem uma ligação muito antiga com as forças conservadoras desta nação... A mesma Química que auxiliou na descoberta da penicilina também nos legou o DDT e a talidomida, e a Física que tão fundamental foi e é para a compreensão da realidade universal foi o berço formativo dos criadores das armas atômicas... Ou seja, tudo depende do uso que se faz da religião e das ciências da natureza...


Qualquer religião será digna de censura se for usada pra justificar preconceitos, manter injustiças sociais ou mesmo se ela se pretender "científica"... A ciência moderna tem pouco mais de 500 anos, e as religiões mais seguidas do mundo não têm menos de 1600 anos; portanto é uma grande impostura dizer que o conhecimento religioso (como, por exemplo, a doutrina criacionista) é sustentado pela ciência. Por outro lado, o conhecimento científico de que dispomos sobre a vida e sobre o universo ainda não dá, e talvez nunca dê, conta de solucionar todos os questionamentos e desafios pelos quais passamos. Isso sem contar que coisas como o racismo, a homofobia, a eugenia, o higienismo, o darwinismo social e a gentrificação dos espaços urbanos já tiveram seus dias de verdade científica universal... E todos pensam que isso tudo que eu citei é coisa de nazista...


Negar o papel da religião na história, nas sociedades e nas culturas humanas é uma prova de quanto desconhecemos por completo esta mesma história, cultura e sociedade. Ou melhor dizendo, de quanto somos pretensiosos em achar que só porque fizemos algumas (milhares de) leituras, ou porque possuímos o domínio dos métodos e do referencial teórico de alguma ciência, que compreendemos e conhecemos os rumos da história humana... Como se o conhecimento, e mesmo a humanidade, fossem estáticos e nunca mudassem... Que, sabemos, melhor do que a maioria das pessoas, o que é melhor para elas. Que, afinal, estamos quase chegando no ponto de fazer com que uma filosofia de vida se torne uma "contra-religião" (Se nos já fizemos isso com o positivismo e o kardecismo, por que razão não poderíamos fazê-lo com o ateísmo e até mesmo com o agnosticismo - seria até mais fácil com este último???) E, da mesma forma, achar que a religião pode suplantar a ciência e o conhecimento humano é fechar os olhos para a realidade dos últimos 500 anos da história universal... Quão atrasado e covarde é usar a fé no divino para justificar e sustentar os mais perniciosos e censuráveis preconceitos!


Por trás disso tudo creio que há uma verdade inconveniente: numa democracia, cabe aos cidadãos escolher o que é melhor para suas vidas. E se eles estiverem fazendo em determinado momento as escolhas menos acertadas e racionais, eles devem perceber e sofrer por si próprios as implicações de suas escolhas, e não serem guiados pela intelligentsia que, afinal de contas, sabe mais do que ninguém o que é melhor para a coletividade. Pode ser um processo lento e doloroso, mas isto é a democracia, meus caros! 


Enfim, é uma discussão entre quem tem razão e quem tem razão, entre pessoas que estão a um só tempo cem por cento certas e cem por cento equivocadas. Mas acredito que ambos os lados necessitam desarvorar um pouco de suas razões, pois que coisa mais arrogante se julgar possuidor de todas as certezas sobre a vida, o mundo e o universo, não é mesmo??? Falamos tanto em tolerância e em aceitação do Outro, mas pouco a praticamos, e quando a praticamos, o fazemos de maneira a estabelecer relações desiguais de hierarquia entre nós, os tolerantes, e o Outro, alvo de nossa benevolente tolerância...


Pra finalizar, vou botar aqui a música "Alucinação" do Belchior (cara que ouvi até cansar na  minha infância, no toca fitas do carro da família), que ilustra bem a minha postura sobre esta e outras questões... Poderia dizer que é um dos meus hinos particulares (os negritos na letra da música são meus, e acredito que sejam os versos mais eloquentes dela):


"Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Nem em tinta pro meu rosto
Ou oba oba, ou melodia
Para acompanhar bocejos
Sonhos matinais...

Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente
Romances astrais
A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais...


Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais...

Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai
Do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!...

Cravos, espinhas no rosto
Rock, Hot Dog
"Play it cool, Baby"
Doze Jovens Coloridos
Dois Policiais
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida...

Mas eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Longe o profeta do terror
Que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais
Amar e mudar as coisas
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais..."



E chega de papo, pois, como diz a letra, afinal de contas o que vale mesmo é amar e mudar este largo mundo!