domingo, 15 de dezembro de 2013

A renúncia impossível, por Agostinho Neto

 Dois grandes aliados e amigos: Agostinho Neto e Fidel Castro; durante a guerra civil angolana, soldados cubanos ali lutaram para defender a independência deste país.
 
 

 Selo postal de Cuba no ano de 2002, comemorativo dos 80 anos de nascimento de Agostinho Neto
 
 
 
Saudações a todos! Para quem não sabe, Agostinho Neto, médico, guerrilheiro e primeiro presidente de Angola, foi também um grande poeta, colocando seus versos e seu estro poético a serviço da luta pela libertação do povo angolano do domínio colonial português. Sobre este aspecto, o grande escritor Jorge Amado disse o seguinte: "Na luta pela independência de Angola, a poesia foi arma poderosa manejada por Agostinho Neto. Na selva, tanto quanto a metralhadora, o fuzil, o facão, a poesia sustentou o ânimo e alimentou a esperança dos guerrilheiros"
 
 
E enquanto estudava medicina na Universidade de Coimbra, Agostinho Neto escreveu este poema que compartilho abaixo, por ser um comovente manifesto; acho que ele cai muito bem pra esses coxinhas que gostam de acreditar que não existe racismo. Pena que parte do legado da luta de Agostinho Neto se perdeu: pouco depois da independência de Angola, o MPLA, como o apoio da União Soviética e  de Cuba, estabeleceu regime de partido único, sufocando a oposição ao nascente governo, o que sem dúvida contribui para que estas forças, como por exemplo o UNITA (com o apoio do regime racista sul-africano e dos Estados Unidos), iniciassem uma prolongada guerra civil, que só foi terminar em 2002, deixou cerca de 500 mil mortos e milhares de minas terrestres ainda hoje ativas sob o solo (muitas das quais ninguém sabe exatamente onde estão armadas); após à morte de Agostinho Neto por câncer de fígado em 1979, seu sucessor, José Eduardo dos Santos, aproveitou-se do estado de guerra civil para se manter no poder e ainda hoje é o presidente de Angola (desde a independência, se realizaram apenas duas eleições - uma das quais no ano passado, sob as quais recaem suspeitas de fraude).
 
 
E por conta das contingências da guerra civil e do fim do bloco liderado pela antiga União Soviética, o MPLA abandonou seu programa marxista-leninista e hoje segue uma linha mais próxima da social-democracia. Enfim, tanto Agostinho Neto como o MPLA não foram santos, mas mostraram ao mundo que entre viver na opressão e morrer lutando pelo seu fim, e preferível a segunda opção. E que esta tão nobre luta também tem seu lado poético. Enfim, vamos ao poema:
 
 
Negação
 
Não creio em mim
Não existo
Não quero eu não quero ser
 
Quero destruir-me
- Atirar-me de pontes elevadas
e deixar-me despedaçar
sobre as pedras duras das calçadas
 
Pulverizar o meu ser
desaparecer
não deixar sequer traço de passagem
pelo mundo.
 
Quero matar-me
e deixar que o não-eu
se aposse de mim.
 
Mais do que um simples suicídio
quero que esta minha morte
Seja uma verdadeira novidade histórica
um desaparecimento total
até mesmo nos cérebros
daqueles que me odeiam
até mesmo no tempo
e se processe a História
e o mundo continue
como se eu nunca tivesse existido
como se nenhuma obra tivesse produzido
como se nada tivesse influenciado na vida
como se em vez de valor negativo
eu fosse Zero
 
Quero ascender, subir
elevar-me até atingir o Zero
e desaparecer.
Deixai-me desaparecer!
 
Mas antes vou gritar
com toda a força dos meus pulmões
para que o mundo oiça:
 
- Fui eu quem renunciou à Vida!
Podeis continuar a ocupar o meu lugar
vós os que mo roubastes
 
Aí tendes o mundo todo para vós
para mim nada quero
nem riqueza nem pobreza
nem alegria nem tristeza
nem vida nem morte
nada.
 
Não sou. Não existo. Nunca fui.
Renuncio-me
Atingi o Zero
 
E agora,
Vivei, cantai, chorai
casai-vos, matai-vos, embriagai-vos
dai esmolas aos pobres.
Nada me pode interessar
que eu não sou
Atingi o Zero!
 
Não contem comigo
para vos servir às refeições
nem para cavar os diamantes
que vossas mulheres irão ostentar em salões
nem para cuidar das vossas plantações
de café e algodão
não contem com operários
para amamentar os vossos filhos sifilíticos
não contem com operários
de segunda categoria
para fazer o trabalho de que vos orgulhais
nem com soldados inconscientes
para gritar com o estômago vazio
vivas ao nosso trabalho de civilização
nem com lacaios
para vos tirarem os sapatos
de madrugada
quando regressardes de orgias nocturnas
nem com pretos medrosos
para vos oferecer vacas
e vender molho a tostão
nem com corpos de mulheres
para vos alimentar de prazeres
nos ócios da vossa abundância imoral.
 
Não contem comigo
Renuncio-me.
Eu atingi o Zero
 
Não existo. Nunca existi.
Não quero vida nem morte
Nada!
 
Podeis agora queimar
os letreiros medrosos
que às portas dos bares, hotéis e recintos públicos
gritam o vosso egoísmo
nas frases: “SÓ PARA BRANCOS” ou “ONLY TO COLOURED MEN”
Negros aqui. Brancos acolá.
 
Podeis acabar
com os miseráveis bairros de negros
que vos atrapalham a vaidade
Vivei satisfeitos sem “colour lines”
sem terdes que dizer aos fregueses negros
que os hotéis estão abarrotados
que não há mais mesas nos restaurantes.
Banhai-vos descansados
nas vossas praias e piscinas
que nunca houve negros no mundo
que sujassem as águas
ou os vossos nojentos preconceitos
com a sua escura presença.
 
podeis transformar em toureiros
ou em magarefes
os membros da Ku-klux-klan
para que matem a sua fome sanguinária
nas feridas dos touros que descem à arena.
Não há negros para linchar!
 
Porque hesitais agora!
Ao menos tendes oportunidade
para proclamardes democracias
com sinceridade
 
Podeis inventar uma nova História.
Inclusivamente podeis atribuir-vos a criação do mundo.
Tudo foi feito por vós
Ah!
que satisfação eu sinto
por ver-vos alegres no vosso orgulho
e loucos na vossa mania de superioridade.
 
Nunca houve negros!
A África foi construída só por vós
A América foi colonizada só por vós
A Europa não conhece civilizações africanas
Nunca um negro beijou uma branca
nem um negro foi linchado
nunca mataram pretos a golpes de cavalo-marinho
para lhes possuírem as mulheres
nunca extorquiram propriedades a pretos
não tendes, nunca tivestes filhos com sangue negro
ó racistas de desbragada lubricidade
Fartai-vos agora dentro da moral.
 
Que satisfação eu sinto
por não terdes que falsear os padrões morais
para salvaguardar
o prestigio, a superioridade e o estômago
dos vossos filhos.
 
Ah!
O meu suicídio é uma novidade histórica
é um sádico prazer
de ver-vos bem instalados no vosso mundo
sem necessidade de jogos falsos.
 
Eu elevado até o Zero
eu transformado no Nada-historico
Eu no inicio dos Tempos
eu-Nada a confundir-me com vós-Tudo
sou o verdadeiro Cristo da Humanidade!
 
Não há nas ruas de Luanda
Negros descalços e sujos
a pôr nódoas nas vossas falsidades de colonização
em Lourenço Marques
em Nova York, em Leopoldville
em Cape-Town
gritam pelas ruas
a foguetear alegria nos ares:
 
-Não há negros nas ruas!
Nunca houve.
Não há negros preguiçosos
a deixar os campos por cultivar
e renitentes à escravização
já não há negros para roubar.
Toda a riqueza representa agora o suor do rosto
e o suor do rosto é a poesia da vida.
 
Não existe música negra
Nunca houve batuques nas florestas do Congo
Quem falou em spirituals?
 
Vão e encham os salões
de Debussy Struss Korsakoff.
Já não há selvagens na terra.
Viva a civilização dos homens superiores
sem manchas negróides
a perturbar-lhe a estética!
 
Nunca houve descobrimentos
a África foi criada com o mundo.
 
O que é a colonização?
O que são massacres de negros?
O que são os esbulhos de propriedade?
Coisas que ninguém conhece.
 
A história está errada
Nunca houve escravatura
nunca houve domínio de minorias
orgulhosas da sua força
 
Acabai com as cruzadas religiosas
A fé está espalhada por todo mundo
sobre a terra só há cristãos
vós sois todos cristãos.
 
Não há infiéis por converter
Escusai de imaginar mais infidelidades religiosas
para justificar
Repugnantes actos de barbarismo.
 
Não necessitais enviar mais missionários
a África
nem aos bairros de negros
Nunca houve feitiços
nem concepções religiosas diferentes
nunca houve religiosos a auxiliar a ocupação militar.
 
Acabai tudo, tudo
e vós sois todos irmãos.
Podeis continuar com os vossos sistemas
socialistas ou capitalistas
que isso não me interessa.
Explorai o proletariado
ou dai-lhe de comer
isso é convosco.
 
Continuai com os vossos sistemas políticos
ditaduras democracias.
Matai-vos uns aos outros
lutai pela glória
lutai pelo poder
criai minorias fortes
que protejam os seus comp…
apadrinhai os afilhados dos vossos amigos
criai mais castas
aburguesai as ideias
e tudo sem a complicação
de verdes intrusos
imiscuir-se na vossa querida
e defendida civilização
dos homens privilegiados.
 
Homens irmãos
dai-vos as mãos
gritai a vossa alegria de serdes sós
SÓS!
únicos habitantes da Terra.
 
Eu atingi o Zero!
 
Isto simplifica extraordinariamente
a vossa ética.
Ao menos não percais agora
a ocasião de serdes honestos.
 
Se houver terramotos
Calamidades, cheias ou epidemias
ou terras a defender da invasão das águas
ou motores parados nas lamas das selvas africanas
raios partam!
já não tereis de chamar-me
para acudir ás vossas desgraças
para reparar os vossos desastres
ou para carregar com a culpa das vossas incúrias.
Ide para o diabo!
 
Eu não existo
Palavra de honra que nunca existi.
Atingi o Zero
o Nada.
Abençoada a Hora
do meu super-suicidio
para vós
homens que construís sistemas morais
para enquadrar imoralidades
 
O sol brilha só para vós
a lua reflecte luz só para vós
nunca houve esclavagistas
nem massacres
Nem ocupações da África.
 
Como até a história
se transforma num Tratado Moral
sem necessidade de arranjos apressados!
 
Não existem os pretos dos cais e do caminho de
ferro.
Nos locais de trabalho nunca se ouviram cantos
dolentes
só há chiadeira do guindastes.
Nunca pisaram os caminhos do mato
carregados com quilos às costas
são os motores que se queimam sob as cargas
 
Ó pretos submissos humildes ou tímidos
Sem lugar nas cidades
ou nos escaninhos da honestidade
ou nos recantos da força
com a alma poisada no sinal menos,
polígamos declarados
dançarinos de batuques sensuais
sabei que subistes todos de valor
Atingistes o Zero
sois Nada
e salvastes o Homem.
 
Acabou-se o ódio de raças
e o trabalho de civilização
 
e a náusea de ver meninos negros
sentados na escola
ao lado dos meninos de olhos azuis
e as extorsões e compulsões
e as palmatoadas e torturas
para obrigar inocentes a confessar crimes
e os medos de revolta
e as complicadas demarches politicas
para iludir as almas simples.
 
Acabaram-se as complicações sociais!
 
Atingi o zero
Cheguei à hora do inicio do mundo
E resolvi não existir.
 
Cheguei ao Zero-Espaço
ao nada-tempo
ao Eu coincidente com vós-Tudo.
 
E o que é mais importante:
Salvei o mundo.
 
 
Afirmação
 
Ah!
 
Faça-se luz no meu espírito
LUZ!
 
Calem–se as frases loucas
Desta renúncia impossível.
 
Eu–todos nunca me enganei
nunca coincidirei com o nada
não me deitarei nunca debaixo dos comboios
 
Não fui eu quem falou
da salvação do mundo
à custa da minha existência
da transformação do valor negativo em Zero
por meio do castigo ao inocente
em super – suicídio novidade histórica
 
Quem falou não fui eu
foi a minha loucura.
 
O meu lugar está marcado
no campo da luta
para conquista da vida perdida
 
Eu sou. Existo
As minha mãos colocaram pedras
nos alicerces do mundo
Tenho direito ao meu pedaço de pão
 
Sou um valor positivo
da humanidade
e não abdico,
nunca abdicarei!
 
Seguirei com os homens livres
O meu caminho
para a liberdade e para a Vida.
 
Perdoem–me os cinco minutos de loucura
que vivi.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

MC Ralph - Os Afro Raps - 2011




01. Agô; 02. Filhos de Ogum; 03. Okê Arô; 04. Canto da Cabocla Jurema; 05. Janaína; 06. Quem foi; 07. Rei Salomão; 08. Santa Bárbara; 09. Atotô; 10. Pacha Mama; 11. Senhora Aparecida; 12. Re-Crianças; 13. Canto do Caboclo Boiadeiro; 14. Oxalá; 15. Adeus, meu povo.


Saudações a todos! Depois de cerca de um mês em que o ânimo e a inspiração para escrever fugiram por completo, e de um tempo ainda maior sem resenhar uma obra musical, voltamos mais uma vez à carga, junto com um disco não tão novo, mas que podemos considerar a descoberta/pedrada musical do ano: Os Afro Raps!
 
 
MC Ralph, rapper radicado em Taubaté, cidade interiorana à cerda de 100 quilômetros de São Paulo, já deve possuir uma história considerável dentro do movimento; fato é que seu disco conta, na faixa 02, com a participação de Emicida, que junto de Criolo é atualmente o nome mais aclamado do rap nacional (vale lembrar aqui uma coisa, embora muita gente que eventualmente leia estas linhas passe a me odiar por causa disso: acho a música dos dois - nem tanto a do primeiro, mas sobretudo a do segundo - fraca demais; a melodia e a temática são angustiantes demais), ainda mais neste momento em que a mídia, de uma maneira geral, procura mostrar o rap como "a" expressão cultural por excelência das periferias, negligenciando ou sufocando as outras que por ali existam (como o funk, por exemplo).
 
 
No mais, é uma prova de que o universo das religiões de matriz nacional transita com incrível naturalidade por todos os gêneros musicais... (Vou confessar algo: quando falo das religiões como o candomblé, a umbanda, o catimbó, etc., sempre me pergunto qual é o termo mais adequado pra nos referirmos à elas: religiões de matriz africana??? religiões afro-brasileiras??? religiões afro-indígenas??? Todas tiveram, em graus diferentes, contribuições de elementos católicos, kardecistas, africanos e indígenas em sua composição, e todas, apesar de serem religiões distintas entre si, guardam muitos pontos de convergência; se resolvemos adotar um termo, corremos o risco de estarmos negligenciando ou omitindo algum aspecto importante na formação e no entendimento destas religiões... Sacaram essa minha inquietação??? Quem sabe um dia eu não escreva aqui algo a respeito disso???) Ou seja, podemos falar de maneira abrangente e respeitosa das coisas do santo em música sem que precisemos recorrer à artificialidade ridícula e ao sentimentalismo de encomenda presente em muitos dos atuais expoentes da música sacra...
 
 
E, não custa nada lembrar, um disco que, neste ano em que rememoramos o centenário de Vinícius de Moraes, evoca o célebre disco "Os Afro-sambas", que sem dúvida é um dos 10 maiores discos da história da MPB, daqueles que marcam renovações temáticas e melódicas no seu gênero. O álbum de MC Ralph não chega a tanto, mas vale (demais) a pena ser ouvido e amplamente divulgado, pois, como já dissemos ainda há pouco, é uma prova viva da versatilidade e da riqueza de nossa cultura... Até a próxima!!!
 
 
Para ouvir a faixa 03, "Okê Arô", é só dar o play no vídeo aí embaixo:
 
 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Um pedacinho de fé no "Tenda dos Milagres" de Jorge Amado

 



"Pois, meu bom – disse o professor arremedando Archanjo e lhe interrompendo os pensamentos, – há uma coisa que me escapa e me deixa curioso. Sobre ela, há muito desejava lhe falar.
 
 
– Que coisa é? Diga e, se puder, responderei.
 
 
– Pergunto como é possível que você, um homem de ciência, sim, um homem de ciência, por que não? Por que não é formado? Vamos deixar de conversa fiada e dizer as coisas como elas são. Pergunto como é possível que você acredite em candomblé.
 
 
Esvaziou o copo de cerveja, voltou a enchê-lo:
 
 
– Porque você acredita, não é? Se não acreditasse, não se prestaria a tudo aquilo: cantar, dançar, fazer aqueles trejeitos todos, dar a mão a beijar, tudo muito bonito, sim, senhor, o frade chega a se babar de gosto, mas, vamos convir, mestre Pedro, tudo muito primitivo, superstição, barbarismo, fetichismo, estágio primário da civilização. Como é possível?
 
 
Pedro Archanjo ficou um tempo em silêncio, empurrou o copo vazio, pediu ao espanhol um trago de cachaça: daquela que você sabe e não de outra.
 
 
– Eu podia dizer que gosto de cantar, de dançar, frei Timóteo gosta de assistir, eu gosto de fazer. Seria bastante.
 
 
– Não, você sabe que não. Quero saber é como você pode conciliar seu conhecimento científico com as obrigações de candomblé. Isso é o que eu desejo saber. Sou materialista, você sabe, e por vezes pasmo ante certas contradições do ser humano. Esta sua, por exemplo. Parece haver dois homens em você: o que escreve os livros e o que dança no Terreiro.
 
 
Chegara a cachaça, Pedro Archanjo emborcou o copo: aquele bisbilhoteiro queria a chave da adivinha mais difícil, do cabuloso enigma:
 
 
– Pedro Archanjo Ojuobá, o leitor de livros e o bom de prosa, o que conversa e discute com o professor Fraga Neto e o que beija a mão de Pulquéria, a iyalorixá, dois seres diferentes, quem sabe o branco e o negro? Não se engane, professor, um só. Mistura dos dois, um mulato só.
 
 
Voz severa e lenta, de desabitual gravidade, cada palavra arrancada do peito.
 
 
– Como lhe é possível, mestre Pedro, conciliar tantas diferenças, ser ao mesmo tempo o não e o sim?
 
 
- Sou um mestiço, tenho do negro e do branco, sou branco e negro ao mesmo tempo. Nasci no candomblé, cresci com os orixás e ainda moço assumi um alto posto no Terreiro. Sabe o que significa Ojuobá? Sou os olhos de Xangô, meu ilustre professor. Tenho um compromisso, uma responsabilidade.
 
 
Bateu na mesa chamando o garção. Mais cerveja para o professor, cachaça para mim:
 
 
– Se acredito ou não? Vou dizer ao senhor o que até agora só disse a mim mesmo e, se o senhor contar a alguém, serei obrigado a lhe desmentir.
 
 
– Fique descansado.
 
 
– Durante anos e anos acreditei nos meus orixás como frei Timóteo acredita nos seus santos, no Cristo e na Virgem. Nesse tempo tudo que eu sabia aprendera na rua. Depois busquei outras fontes de saber, ganhei novos bens, perdi a crença. O senhor é materialista, professor, não li os autores que o senhor cita, mas sou tão materialista quanto o senhor. Ainda mais, quem sabe?
 
 
– Ainda mais? E por quê?
 
 
– Porque sei, como o senhor sabe, que nada existe além da matéria mas sei também que, mesmo assim, às vezes o medo enche meu tempo e me perturba. O meu saber não me limita, professor.
 
 
– Explique isso.
 
 
– Tudo aquilo que foi meu lastro, terra onde tinha fincado os pés, tudo se transformou num jogo fácil de adivinhas. O que era milagrosa descida dos santos reduziu-se a um estado de transe que qualquer calouro da Faculdade analisa e expõe. Para mim, professor, só existe a matéria. Mas nem por isso deixo de ir ao Terreiro e de exercer as funções de meu posto de Ojuobá, cumprir meu compromisso. Não me limito como o senhor que tem medo do que os outros possam pensar, tem medo de diminuir
o tamanho de seu materialismo.
 
 
– Sou coerente, você não é! – explodiu Fraga Neto: – Se não acredita mais, não acha desonesto praticar uma farsa, como se acreditasse?
 
 
– Não. Primeiro, como já lhe disse, gosto de dançar e de cantar, gosto de festa, antes de tudo de festa de candomblé. Ademais, há o seguinte: estamos numa luta, cruel e dura. Veja com que violência querem destruir tudo que nós, negros e mulatos, possuímos, nossos bens, nossa fisionomia. Ainda há pouco tempo, com o delegado Pedrito, ir a um candomblé era um perigo, o cidadão arriscava a liberdade e até a vida, O senhor sabe disso, já conversamos a respeito. Mas, sabe quantos morreram? Sabe por acaso por que essa violência diminuiu? Não acabou, diminuiu. Sabe por que o delegado foi posto na rua? Sabe como se deu?
 
 
– Já ouvi contar, mais de uma vez. Uma história de absurdos com seu nome no meio.
 
 
– O senhor pensa que, se eu fosse discutir com o delegado Pedrito, como estou discutindo com o senhor, teria obtido algum resultado? Se eu houvesse proclamado meu materialismo, largado de mão o candomblé, dito que tudo aquilo não passava de um brinquedo de crianças, resultado do medo primitivo, da ignorância e da miséria, a quem eu ajudaria? Eu ajudaria, professor, ao delegado Pedrito e sua malta de facínoras, ajudaria a acabar com uma festa do povo. Prefiro continuar a ir ao candomblé, ademais gosto de ir, adoro puxar cantiga e dançar em frente aos atabaques.
 
 
– Assim, mestre Pedro, você não ajuda a modificar a sociedade, não transforma o mundo.
 
 
- Será que não? Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta da capoeira, o samba-de-roda, os afoxés, os atabaques, os berimbaus, são bens do povo. Todas essas coisas e muitas outras que o senhor, com seu pensamento estreito, quer acabar, professor, igualzinho ao delegado Pedrito, me desculpe lhe dizer. Meu materialismo não me limita. Quanto à transformação, acredito nela, professor, e será que nada fiz para ajudá-la?
 
 
O olhar se perdeu na Praça do Terreiro de Jesus:
 
 
– Terreiro de Jesus, tudo misturado na Bahia, professor. O Adro de Jesus, o Terreiro de Oxalá, Terreiro de Jesus. Sou a mistura de raças e de homens, sou um mulato, um brasileiro. Amanhã será conforme o senhor diz e deseja, certamente será, o homem anda para a frente. Nesse dia tudo já terá se misturado por completo e o que hoje é mistério e luta de gente pobre, roda de negros e mestiços, música proibida, dança ilegal, candomblé, samba, capoeira, tudo isso será festa do povo brasileiro, música, balé, nossa cor, nosso riso, compreende?
 
 
– Talvez você tenha razão, não sei. Devo pensar.
 
 
– Digo-lhe mais, professor. Sei de ciência certa que todo sobrenatural não existe, resulta do sentimento e não da razão, nasce quase sempre do medo. No entanto, quando meu afilhado Tadeu me disse que queria se casar com moça rica e branca, mesmo sem querer pensei no jogo feito pela mãe-de-santo no dia em que ele se formou. Trago tudo isso no sangue, professor. O homem antigo ainda vive em mim, além de minha vontade, pois eu o fui por muito tempo. Agora eu lhe pergunto, professor: é fácil ou é difícil conciliar teoria e vida, o que se aprende nos livros e a vida que se vive a cada instante?
 
 
– Quando se quer aplicar as teorias a ferro e fogo, elas nos queimam a mão. É isso que você quer dizer, não é?
 
 
– Se eu proclamasse minha verdade aos quatro ventos e dissesse: tudo isso não passa de um brinquedo, eu me colocaria ao lado da polícia e subiria na vida, como se diz. Ouça, meu bom, um dia os orixás dançarão nos palcos dos teatros. Eu não quero subir, ando para a frente, camarada"

 

domingo, 15 de setembro de 2013

V de velhacaria, ou os guardiões da lei, da moral e dos bons costumes


Saudações a todos. Com a eclosão dos últimos protestos, que como vocês devem bem se lembrar inicialmente visavam a redução da tarifa do transporte público, e que com a virulência dos acontecimentos trouxeram à baila inúmeras questões ainda candentes em nossa sociedade, uma das quais a apropriação do movimento pelas classes mais conservadoras, que ao participar dos acontecimentos quiseram impor as suas bandeiras.


E entre essas bandeiras está uma suposta exigência de moralização da vida política da nação, com "a luta pelo fim da corrupção". Não vamos aqui nem nos deter no que pudemos notar nesses dias tão intensos: gente querendo a volta da ditadura militar, a restauração da monarquia, a manutenção dos preconceitos e desigualdades sociais; fiquemos por ora neste ponto específico, o "fim da corrupção", sobretudo porque é um tema que ainda é capaz de subverter a opinião de gente não muito esclarecida nesses assuntos.


Com certeza muita gente bem-intencionada se pergunta: "Ora, se o nosso país é tão rico, por que em seu seio há tanta gente na pobreza, à margem dos direitos mais básicos??? Porque praticamente todos os serviços e equipamentos públicos estão tão precários, apesar dos altíssimos impostos que pagamos (queixa frequentíssima da classe média)???" E a que considero a cereja do bolo: "Se o Lula e o PT chegaram ao poder prometendo mudar este país, porque a nossa vida (da classe média, vale bem lembrar), continuou como dantes no quartel de Abrantes (Justo nós, que carregamos este país nas costas e pensávamos que o governo petista ia transformar esta nação no parque de diversões de nossos loucos devaneios)???"


Talvez todo este povo não tenha em mente que este argumento, no qual primeiro é necessária um reforma moral para depois combatermos as injustiças sociais, ou que a reforma moral dos poderes executivo e legislativo por si só já resolveria todos os graves problemas sociais de que padecemos, lembra muito o pensamento de certo economista nos tempos da ditadura militar, que dizia que "primeiro deveríamos deixar o bolo crescer para depois dividir ente a nação", ou mesmo dos que o precederam logo após o fim desta mesma ditadura, que também pensavam que primeiro era necessário sanar os problemas da economia (leia-se: controlar a inflação e o desemprego) para depois pensarmos nos problemas sociais da nação. E os resultados de suas ações já são bem conhecidos, e sem sombra de dúvida podemos afirmar que ainda hoje pagamos o preço de seus descalabros.


Mais do que nunca, é preciso superar este paradigma de classe média individualista que só pensa em seu próprio umbigo. A vida da classe média aqui em nossas bandas pode estar bem longe de ser o paraíso esperado, mas eu garanto que nesta nação há milhões de seres humanos que, sem pensar duas vezes, trocariam sua vida de pobreza e humilhações de toda espécie por qualquer um dos privilégios que qualquer membro da classe média tem acesso. E é justamente para estes que historicamente foram excluídos dos mais básicos direitos que os últimos três governos federais tem governado, em que pese seus inúmeros vícios e a completa falta de energia em atuar em certos problemas mais prementes. 


Por esta e outras razões (queria desenvolver mais minha argumentação, mas a inspiração pra continuar escrevendo já me foge), compartilho abaixo o texto de um grande amigo que me conheceu ainda na tenra infância e que depois de 20 anos tive o prazer de reencontrar pelas redes sociais. O sujeito tem uma linha de pensamento semelhante à minha, mas com a vantagem de ser um polímata, e de ter vivido neste mundo e militado por boas causas muito mais que eu (sua cabeça já grisalha é prova disto tudo que afirmo). O texto abaixo é uma síntese de tudo que escrevi neste post até agora:


Aos bobalhões de barriga cheia, roupas limpas e casa pra morar, que saem fazendo passeatinha oca "pelo fim da corrupção", saibam algumas coisas.


1) É lamentável, mas a corrupção MUNDIAL é tão inerente às comunidades humanas quanto o sexo, dormir, alimentar-se e respirar. Em países em que a população vive bem melhor que aqui, 25% afirmam já ter pago algum tipo de propina a policiais, governantes e cartorários. Dinamarca e Finlândia figuram no topo das listas de países onde a corrupção é maior.


2) A corrupção governamental oscila entre 2% e 6% do PIB dos PAÍSES (o que é um dinheiro estrondoso!). No Brasil ela oscila entre 1,7% e 2,5%, o que também daria pra fazer muita coisa, mas nos coloca apenas em 69⁰ lugar entre os mais corruptos.


3) Nos cômputos da corrupção estão também o "trocadinho a mais" para liberar carteira de motorista, o "quebra-galho" para acelerar processos burocráticos e até pequenas "falsificações ingênuas" (comércio de atestados médicos falsos, diplomas e declarações, cancelamento de multas diversas, liberação de construções irregulares e obtenção de pequenas vantagens como informações sobre concorrentes). Poucos escapariam de uma peneira fina...


4) Não existe corrupção governamental sem a correlação com a acumulação privada e o enriquecimento de empresas de todo porte. Inclusive marcas por aí, que botam páginas nas redes sociais e o pessoal "curte" (bancos, telecomunicação, grifes, jornais, revistas e agremiações esportivas).


5) Grande parte dos desvios se dão por meios "legais". Os lobbies sobre casas parlamentares e que resultam em leis, que favorecem: a exploração de mão-de-obra precária (terceirizações e cooperativas fajutas), a remissão de dívidas tributárias de empresas (opa!) e a cessão de benefícios fiscais a negócios lucrativos, inclusive ONGs e templos religiosos.


Então, aos trouxas que ficam "passeatando" com vassourinhas janistas, mascarazinhas de filme, clamam "fora Fulano, fora Beltrana", percebam o quanto vocês se deixam manipular por gente que quer suprimir os SEUS direitos trabalhistas, tapeá-los com a "imprensa livre", achatar as condições de vida de trabalhadores pobres e entregar nossa economia a trustes transnacionais. 


Se quer combater a corrupção, comece parando de pagar suborno ao despachante, comparecendo à reunião do seu condomínio, participando de associações de pais da escola de seus filhos e votando dentro de seu sindicato. O resto é balela, seus tontos!

domingo, 8 de setembro de 2013

The zueira never ends?




Saudações a todos! Como vocês devem saber, existe um intenso debate quanto aos limites do humor: será que podemos fazer piada com tudo e todos ou há piadas que não são tão legais de se fazer??? Qual a função do humor: ser um instrumento crítico da realidade e das instituições ou buscar apenas o riso??? São questões que não são fáceis de serem respondidas a priori, mas que ganharam uma grande importância, sobretudo por causa do que este sujeito aí da foto tem dito ultimamente em seu programa e nas redes sociais, onde , inclusive ele divulgou este vídeo aqui:





E, como sabemos, ele e vários outros gostam muito de dizer que praticam o "humor politicamente incorreto". Talvez parte do sucesso deles venha porque eles rompem com o velho humor de tipos e personagens caricatos, fórmula consagrada desde os tempos do rádio. Ou talvez porque em suas piadas eles falam daquilo que está na cabeça de muitos de nós, mas que por alguma razão não temos coragem de exprimir publicamente. Mas isso não responde às nossas questões iniciais. Sobre tudo isso, acho muito pertinentes as palavras de Roberto Gomes, no primeiro capítulo de sua "Crítica da Razão Tupininquim" (livro que todos os cultores das ciências humanas não podem deixar de ler, e que está disponível na íntegra aqui); os grifos são meus: 


"Gostamos muito de piadas. Há todo um espírito brasileiro que se delicia com a própria agilidade mental, esta capacidade de ver o avesso das coisas revelado numa palavra, frase, fato. Somos, os brasileiros, muito bem-humorados. Conseguimos rir de tudo. Do governo que cai e do governo que sobe. Das instituições que deveriam estar a nosso serviço, dos dirigentes que deveriam representar nossos interesses. E não é só. Chegamos a fazer piadas sobre nossa capacidade de fazer piadas. Nada mais ilustrativo do que a série de piadas onde representantes de outros países são ridicularizados pelo desconcertante 'jeitinho' de um brasileiro. Neste plano, seja dito, nos movemos com facilidade gritante (...)


Creio que a existência de uma piada tipicamente brasileira deveria ser objeto de estudo mais aprofundado. Possuirá características específicas? Que atitudes básicas revela? Uma saudável maneira de suportar um existir humilhado? Um modo de estar acima daquilo que amesquinha nosso dia a dia? Talvez sim. Certamente sim. Uns reagem com dramaticidade, tragédia e muito sangue - ocorreu-nos reagir com o riso. Talvez uma posição existencial muito nossa. O riso - um certo tipo de riso, o nosso - nos salva, tiraniza o tirano, amesquinha quem nos tortura, exorciza nossas angústias(...)


Há um perigo, porém. Sempre há um perigo. A mesma piada que salva pode mascarar-se em alienação. Como qualquer criação humana, também a piada deve ser essencialmente crítica, já que é de sua pretensão ser isso: uma forma de conhecimento. Ora, quando o riso se perde em pura facilidade, em distração, morre a atitude crítica. E o 'jeito piadístico' estará a serviço de nossa inautenticidade. Há indícios, entre nós, de tal coisa: deixar como está pra ver como é que fica; não esquentar a cabeça; analisa não; dá-se um jeito.


O conformismo brasileiro encontra aí seu terreno de eleição. Justificar, por exemplo, sua própria condição - dependência, insolvência política, jogos de privilégios - através de um simples 'o brasileiro é assim mesmo', eis o que impede seja criada entre nós uma atitude tipicamente brasileira ao nível da reflexão crítica, proposta e assumida como nossa. Desconhecendo-se (...) o brasileiro aliena-se de dois modos: rindo-se de sua sem-importância ou delirando em torno do 'país do futuro', em variados 'anauês'. Na verdade, conformismo e ausência de poder crítico, pois nos dois casos há um abandono - 'deixa como está para ver como é que fica' - e uma esperança mágica - 'dá-se um jeito' "


Perceberam a força destas linhas, meus caros??? De fato, o humor para se realizar precisa de algo que possa ser caricaturizado e ridicularizado, pois como toda forma de conhecimento, ele é crítico por natureza. Mas temos sempre que bater nas mesmas vítimas, nos estereótipos já prontos??? Temos que passar a vida reforçando "olha como aquele gordo só faz gordice", "olha como aquele homossexual é escandaloso", "olha como aquele negro é orgulhoso", "olha como aquele macumbeiro é ignorante", "olha como aquela mulher [que nos negou sexo, ou que respondeu nossa cantada escrota à altura] é feia e malcomida", e por aí vai ??? Temos que, como se não bastasse uma determinada mulher ter passado pela violência e pelo terror de um estupro, fazer troça de tudo que ela passou, só pra no fim reforçar que ela teve a culpa de tudo o que lhe aconteceu???


E mais: não é de se estranhar de que a maioria dos cultores deste tipo de humor sejam em sua esmagadora maioria homens, brancos, heterossexuais, não pertencentes a qualquer minoria social, étnica ou religiosa, e de uma condição social e econômica razoavelmente privilegiada??? Calma, não estou dizendo que há temas intocáveis no humor, mas há maneiras de se abordar estes temas sem bater nos alvos de sempre! Para os sedentos por provas, ei-las (ah! um aviso! Quanto ao terceiro vídeo, certifique-se de que as crianças e o seu chefe não estão por perto quando você estiver assistindo, ok?):











Poderíamos citar outros exemplos com este e com outros humoristas, mas acho que esses três vídeos ilustram bem o que eu quero dizer; são os mesmos temas polêmicos, mas o foco da piada é completamente diferente. Talvez não seja todo mundo que disponha de talento e de inteligência suficiente para conceber uma piada nesses moldes, e talvez também seja necessária uma certa agudeza pra entender e rir de piadas como as dos vídeos acima. Mas a questão exige um posicionamento claro: vamos sempre ficar chutando cachorro morto na rua ou vamos fazer como a criança do conto "A Roupa Nova do Rei", gritando a plenos pulmões: "Ih, o rei está nu!" ???


Tirem as suas próprias conclusões, meus caros! E, quando puderem, assistam este documentário aqui, um resumo mais aprofundado de tudo que abordamos neste post... Até a próxima!

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O feminismo ainda continua sendo a questão, ou "Na miséria humana do capital, o machismo ainda é triunfo social"


Quem minimamente esclarecido não gostaria de ser filho deste casal, ou de ter um romance assim? (só não sei ao certo se tão poliamoroso como era a relação dos dois, mas tá valendo!)? Duas das maiores mentes do século passado: Jean-Paul Sartre  e Simone de Beauvoir. Ambos tremendamente engajados nas questões sociais de seu tempo...
 
 
Saudações a todos! Há alguns dias atrás, eu dei aqui mesmo no blog (é meio deselegante ficar se auto-referenciando, mas o que fazer se as vezes isto é necessário?) uma breve opinião sobre algumas coisas que eu sei a respeito do feminismo. Pois bem, há uma amiga de quem já compartilhei vários textos aqui no blog, e que nestas questões possui muito mais leitura e experiência do que eu, e tanto nestas linhas abaixo como no blog dela já nos deu inúmeras provas de sua inteligência, de sua dedicação e de seu amor às ciências humanas...
 
O texto em questão é resultado dos fichamentos que ela fez de suas leituras de Simone de Beauvoir (eu tenho aqui comigo em pdf os dois volumes da edição brasileira d'o "Segundo Sexo", mas vejam que só de livros que eu comprei e ainda não li eu já tenho um armário lotado; deveria ter duas vidas: uma pra viver e outra pra ler tudo o que seja digno de ser lido) e que aborda muitas questões candentes para o pensamento feminista, bem como onde se fundamentam alguns dos nossos machismos de cada dia... Agradecemos à nossa amiga, que não só permitiu que republicássemos este texto (eu fiz pequenos acertos na pontuação e na concordância de algumas frases, mas creio ter tomado o cuidado de não alterar o sentido original do texto!) como deu sua contribuição para que eu conhecesse quase tudo o que hoje eu sei sobre feminismo e assim, talvez, me tornasse um cara menos babaca do que já sou (e isto já é um grande feito!)... Vamos à leitura!
 
 
As reivindicações femininas começam a fervilhar mais durante a época da primeira revolução industrial, quando as mulheres são inseridas na indústria, e apesar do trabalho ser igual em termos de rendimento e de produção, as mulheres ganham significantemente menos que os demais operários. Também apesar dos esforços das mulheres operárias, os homens operários tentam parar esse movimento, pois, se sentem ameaçados com o potencial feminino mal remunerado; a má remuneração garante a dependência feminina. Portanto, não se trata de uma questão de potencial, e sim de indicar claramente a classe social destinada as mulheres. Assim, as relações capitalistas se estabelecem como uma maneira de manter o machismo; para o capitalismo é interessante manter o modelo de família patriarcal para proteção da propriedade privada, com a mulher dentro da casa sendo vista como ‘dona do lar’.
 
 
E o antifeminismo invade muitos campos; para provarem a inferioridade da mulher apelam à teologia, filosofia e biologia ultrapassadas, religião, psicologia experimental, etc. Assim, estabelecem sua forma de ‘igualdade na desigualdade', como ocorreu com os afrodescendentes no Brasil e nos EUA, quando democracia é sinônimo de estabelecer um congelamento da ordem social (você não pode se rebelar, nem tem como trocar a ordem dos fatores, porém, deve obedece-la como se fosse sinônimo de igualdade).
 
 
Simone de Beauvoir aponta que, quer seja uma etnia, uma condição social, o sexo, a cultura, suas formas de descriminação desembocam em repetidos argumentos, defendendo a não-transição democrática desses grupos em função de não mudar a ordem, como forma de liberdade, aumentando a discriminação. A liberdade é manter a elite na elite, e o sinônimo de ‘democracia falida’ é a perda dos privilégios, invertem o sentido da palavra por completo. Ou seja, o “eterno feminino” é como a “alma negra” e o “caráter judeu”.
 
 
A diferença do caráter judeu é que para os antissemitas os judeus não tinham espaço no mundo, por isso à ideia de aniquila-los; no caso das mulheres e dos afrodescendentes a intenção é colocá-los ‘nos seus lugares’, dar uma ordem a eles. E nisto os argumentos da ‘mulher de verdade’ e do ‘negro bom’ parecem antinaturais, é como se transcendessem da sua própria essência e surpreendessem o mundo com seu caráter diferente do esperado. Também é necessário ver que a condição social tem muito a dizer em como a sociedade vê o grupo; visto de um caráter hegeliano, ser é ter para a sociedade do capital, e os afrodescendentes e as mulheres estão abaixo do nível considerado ‘sucesso’ na sociedade, ou seja, são encarados como incapazes, a tal ponto que o ‘ter’ é privando-lhes.
 
 
A ideia é que quando uma mulher consegue algo na sociedade, é como se estivesse roubando algo: rouba o direito do homem quando exige pensão, rouba a vaga do homem médico quando está estudando medicina, rouba o direito de escolha do homem quando exige a legalização do aborto, etc., a sociedade do sucesso e da escolha não nos pertence. Também partindo ainda dos status sociais, é visível que até os mais pobres dos homens brancos são vistos como semideuses diante das mulheres; se orgulham do fato de serem homens, brancos, heterossexual, pois em termos de sociedade é o que lhes resta, o orgulho ao preconceito que os mantêm assegurados de seus pequenos privilégios.
 
 
Ninguém é mais perigoso a uma mulher do que um homem que duvida da sua própria virilidade e contém complexo de inferioridade; os que não se intimidam com os demais se mostram mais abertos a compreender e reconhecer a mulher como semelhante. É notório que isto está interligado na suposta bondade masculina quanto às mulheres; mostra o quanto uma mulher é inferior aos demais quando ela necessita de ajuda, e o sentido de comunidade apenas serve para os seres masculinos. Visto que a mulher como qualquer ser humano e social precisa compartilhar para viver, isso é usado como pretexto para inferioridade, o homem pede ajuda por questão de companheirismo, a mulher pela ‘fragilidade’, na visão social machista, não existe ajuda para a mulher sem o discurso carregado de necessidade do homem para sobreviver, enquanto para o homem, a ajuda não passa de mera ajuda.
 
 
Para o homem, isto é insignificante, porém para a mulher, isto é determinante a tal ponto de acabar sendo convencida que isso é a ‘ordem natural’ das coisas, ela ‘precisa’ do homem para viver. Por isso, Simone de Beauvoir comenta tanto sobre não nos deixarmos impressionar pelos elogios da ‘mulher de verdade’; isso é uma forma de nos desviar da nossa luta para uma questão meramente de vaidade. Essa mesma vaidade está transbordando na arrogância masculina social, a ponto da questão feminina se tornar absurdo o suficiente para ser visto meramente como algo polêmico.
 
 
Em termos de felicidade, Simone afirma que não é interessante discutir o que deixaria uma mulher mais feliz sem impor uma condição restrita: em quais níveis uma mulher operária é mais feliz que uma dona de casa? A questão não é a felicidade entre uma função e outra pois, embora nos ocupemos em enfiar a felicidade em preceitos pré-formados, não é na prática dessa maneira que a mesma se faz. Entramos mais em questão de liberdade, o importante é a liberdade de escolha feminina e de condição, da mulher ser vista como humana, a liberdade é realmente a grande questão. E essa liberdade jamais será atingida quando o ponto de vista do outro for imposto, este outro, muitas vezes utiliza o termo ‘fêmea’, algo natural como forma pejorativa, como insulto, enquanto o ‘macho’ é sinônimo de coragem, valentia, a fêmea é a covardia, a traição de uma moral.
 
 
Desde o vocabulário até a piada, o todo em geral carrega (muito) discurso político, a ponto de naturalizarem uma violência sofrida por mulheres na maioria: o estupro. O estupro é visto como piada, como algo para se tirar sarro quando é colocado em uma piada, tem uma diferença com bastante discrepância do seu sentido original, e quanto mais se cria diversão em cima de algo violento e sério, mais natural parece o estupro, um ato nada natural, que é fruto de uma violência social. E essa brincadeira vende bem.
 
 
Enfim, um pequeno post sobre algumas reflexões acerca da mulher e seu ‘existencialismo’ todo sufocado pelo estereótipo de beleza e moral ditados pretensiosamente pelo masculino.
 
 
 


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Os umbandistas não conhecem sua própria história e sua própria cultura

 
Sete da Lira, tão esquecido entre os próprios umbandistas!
 
Saudações a todos! Eu havia planejado escrever este post antes do último que publiquei, mas como já disse alguma vez por aqui, resenhar um disco é muito mais fácil. Assim sendo, falarei de um tema que, por conta de minhas pesquisas e de minha vivência na religião umbandista, se tornou bastante candente: quando estudamos a história, a música e a cultura umbandistas, notamos que há entre os próprios adeptos da religião um total desconhecimento da música e da cultura da Umbanda, isso pra não falarmos de uma total falta de zelo em preservar a memória histórica e cultural da religião...
 
 
Me explico: aqui mesmo no blog, eu contei por alto um pouco da história do Seu Sete da Lira de D. Cacilda, enquanto resenhava um dos três discos que foram lançados em sua inspiração (aliás, este é o post mais lido e comentado do blog até hoje). Eu comentei com alguns umbandistas mais velhos (entre os quais minha mãe de santo) sobre esta história, e perguntei se eles já haviam ouvido falar dela. E não é que nenhum dos que eu consultei disseram ainda se lembrar disso??? E estamos falando de uma entidade que roubou a cena dos dois maiores programas de TV das duas maiores emissoras da época, de tal forma que ensejou um maior arrocho da censura da ditadura militar na televisão; estamos falando de uma entidade que atraía todos os sábados em seu tempo milhares de pessoas, e seu legado desaparece assim, quase sem deixar rastro??? Felizmente, há dois sujeitos que foram filhos de santo deste templo, e que nesta e também nesta outra página do Facebook, postaram fotos e relatos que nos ajudam a entender um pouco desta história e não deixar o legado de Seu Sete da Lira se perder por completo.
 
 
Mas os casos de abandono e de esquecimento da memória histórica e cultural da Umbanda não param por aqui. Todos os que gostam de samba certamente já ouviram falar de D. Ivone Lara, ou certamente já ouviram ao menos uma vez uma de suas inúmeras composições. O que muito pouca gente sabe é que antes mesmo de gravar seus discos ela participou de um disco de inspiração umbandista, e não era um disco qualquer: era o último de uma famosa série de discos umbandistas, a "Saravá... Umbanda é Paz e Amor", na qual se gravaram inúmeros pontos ainda hoje utilizados nos terreiros, bem como várias composições de José Manuel Alves, autor do Hino da Umbanda; este disco, além de contar com a presença de D. Ivone Lara, conta também com a presença de duas cantoras bastante apreciadas na música do santo: Baianinha e Genimar (desta última eu resenhei aqui o seu apreciado disco - é o segundo post mais lido e comentado do blog); o disco contém jongos, toadas e sambas de inspiração nas coisas do santo, e ficou tão bom que serviu de base para duas coletâneas.
 
 
Mas, incrivelmente, esta informação não consta na página oficial de Dona Ivone ou na página da Wikpédia à ela dedicada. E isto é espantoso não só se considerarmos que é o governo do estado do Rio de Janeiro que financiou a criação da página oficial da cantora, mas também por considerarmos que este desconhecimento também grassa dentro do próprio meio umbandista. Só para provar que não minto, eis aí os fonogramas cantados por D. Ivone Lara. O LP em questão é raro, mas pude obter as faixas por virtude de uma coletânea que aproveitou boa parte das músicas dele:
 
 
 






Antes que alguém me acuse de estar difamando a imagem de uma famosa e respeitada sambista, ou mesmo de estar criticando injustamente minha própria religião, devo lembrar que as questões que pretendo levantar aqui são de muita pertinência neste momento em que tanto se discute qual é o papel da religião umbandista dentro da sociedade, como ela poderá se defender da intolerância religiosa da qual ela sempre foi vítima e que agora está sendo levada a cabo por algumas denominações cristãs, ou mesmo de que forma ela poderá gozar da legitimidade social plena, coisa que já tem legalmente, mas ainda não tem de fato. E aí eu me pergunto: como poderemos nos dedicar à estas tarefas se nem ao menos conhecemos o legado de nossa religião??? Se pouco ou nada sabemos de sua história, de sua música, de sua literatura???
 
 
Enquanto perdemos tempo e paciência discutindo infrutiferamente se devemos ou não usar atabaques, sacrificar animais, utilizar o fumo e/ou a bebida alcóolica ou mesmo cultuar os exus e pomba-gira dentro dos templos, estamos permitindo que todo um patrimônio histórico e cultural que não se pode encontrar em nenhuma outra religião ou grupo social do mundo morrer juntamente com seus detentores... E, se deixamos tal coisa acontecer, temos um grande prejuízo não só à religião, mas a todo o nosso saber enquanto humanidade... Se as outras religiões gabam tanto sua filosofia, sua história, enfim, sua cultura, porque nós umbandistas ainda não pudemos fazer o mesmo???
 
 
Como eu costumo dizer: as questões são muitas, e encontrar uma resposta para elas não é nada fácil. Mas eu espero que com estes breves exemplos, eu tenha dado uma pequena contribuição à este tema... Até a próxima!

terça-feira, 30 de julho de 2013

Botequim do Camisa - 1991


01. Hino do Botequim do Camisa; 02. Triste andança; 03. Minha sina; 04. Só quero você; 05. Obatalá; 06. Valeu; 07. Pé no chão; 08. Algo de valor; 09. Dona saudade; 10. Santa Luzia; 11. Foi a noite; 12. Hino do Camisa Verde e Branco.


Saudações a todos! Agora que a inspiração volta a nos favorecer novamente, vamos a mais uma resenha musical. Já falei aqui de como é relativamente fácil resenhar um disco, mas este daqui é especial, pois se  trata de um disco  bastante emblemático para o pagode paulista (mais conhecido como pagode mela-cueca), de que aliás eu tenho o prazer de possuir uma cópia em LP:  o disco com os grupos que se apresentavam no "Botequim do Camisa"!


Só para explicar, o "Botequim do Camisa" era uma balada de pagode promovida entre os anos 80 e 90 pela Camisa Verde e Branco, tradicional escola de samba de São Paulo (que é uma das maiores vencedoras do carnaval paulistano, mas já há alguns anos está caidinha lá no Grupo de Acesso), onde vários grupos se apresentavam pra animar a rapaziada; se não estou enganado, esse evento ainda hoje é realizado na quadra da escola. E entre os grupos de pagode que na época se apresentavam por lá estavam três que em nossa infância cansamos de ouvir no rádio: Negritude Júnior (cujo nome, vale lembrar, é inspirado no nome de legendário time da várzea paulistana, o Negritude F.C. da Cohab de Arthur Alvim), Sensação e Juventude do Pagode. E neste disco estão as primeiras gravações destes grupos...


Pois bem, apesar de muita gente torcer o nariz ainda hoje para essa modalidade do pagode, eu vejo que este foi um disco importante, não só porque lançou estes grupos que citei, mas porque esta obra de certa forma, se remete à nossa infância: me lembro nitidamente de algumas das músicas deste disco serem tocadas à exaustão nas FMs de São Paulo e região (era assim que aprendíamos as músicas no tempo em que não havia internet, ou quando o dinheiro para comprar LPs, fitas cassete ou CDs não chegava, meus caros!), e quem foi criado nas imediações desta metrópole nos anos 90 com certeza se lembra de uma música destes grupos que citei e de vários outros mais... Enfim, é algo que faz parte da história de nossa vida, e, por que não dizê-lo, da história musical de São Paulo...


A mesma gravadora (TNT Records) pela qual este disco  foi lançado ainda tentou emplacar obras semelhantes, como por exemplo os discos dos festivais de pagode da Caprichosos do Piqueri (bloco carnavalesco de São Paulo) e das Cohabs da Zona Leste de São Paulo, mas os discos (que também tenho aqui em casa) ficaram ruins demais, sobretudo na parte dos arranjos musicais; cada um tem no máximo três músicas boas. Pois bem ,acho que não há mais nada a dizer sobre esta obra, que à parte de conter composições de alguns nomes aclamados do samba paulistano (como Jorge Costa, Carica e Paquera) está disponível na web para todos ouvirem... Até o próximo post, que eu estou doido pra dar uma pitada!


Para ouvir a faixa 09, "Dona Saudade", na interpretação do já ido grupo Juventude do Pagode, clica nesse vídeo aí embaixo: