segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Um pedacinho de fé no "Tenda dos Milagres" de Jorge Amado

 



"Pois, meu bom – disse o professor arremedando Archanjo e lhe interrompendo os pensamentos, – há uma coisa que me escapa e me deixa curioso. Sobre ela, há muito desejava lhe falar.
 
 
– Que coisa é? Diga e, se puder, responderei.
 
 
– Pergunto como é possível que você, um homem de ciência, sim, um homem de ciência, por que não? Por que não é formado? Vamos deixar de conversa fiada e dizer as coisas como elas são. Pergunto como é possível que você acredite em candomblé.
 
 
Esvaziou o copo de cerveja, voltou a enchê-lo:
 
 
– Porque você acredita, não é? Se não acreditasse, não se prestaria a tudo aquilo: cantar, dançar, fazer aqueles trejeitos todos, dar a mão a beijar, tudo muito bonito, sim, senhor, o frade chega a se babar de gosto, mas, vamos convir, mestre Pedro, tudo muito primitivo, superstição, barbarismo, fetichismo, estágio primário da civilização. Como é possível?
 
 
Pedro Archanjo ficou um tempo em silêncio, empurrou o copo vazio, pediu ao espanhol um trago de cachaça: daquela que você sabe e não de outra.
 
 
– Eu podia dizer que gosto de cantar, de dançar, frei Timóteo gosta de assistir, eu gosto de fazer. Seria bastante.
 
 
– Não, você sabe que não. Quero saber é como você pode conciliar seu conhecimento científico com as obrigações de candomblé. Isso é o que eu desejo saber. Sou materialista, você sabe, e por vezes pasmo ante certas contradições do ser humano. Esta sua, por exemplo. Parece haver dois homens em você: o que escreve os livros e o que dança no Terreiro.
 
 
Chegara a cachaça, Pedro Archanjo emborcou o copo: aquele bisbilhoteiro queria a chave da adivinha mais difícil, do cabuloso enigma:
 
 
– Pedro Archanjo Ojuobá, o leitor de livros e o bom de prosa, o que conversa e discute com o professor Fraga Neto e o que beija a mão de Pulquéria, a iyalorixá, dois seres diferentes, quem sabe o branco e o negro? Não se engane, professor, um só. Mistura dos dois, um mulato só.
 
 
Voz severa e lenta, de desabitual gravidade, cada palavra arrancada do peito.
 
 
– Como lhe é possível, mestre Pedro, conciliar tantas diferenças, ser ao mesmo tempo o não e o sim?
 
 
- Sou um mestiço, tenho do negro e do branco, sou branco e negro ao mesmo tempo. Nasci no candomblé, cresci com os orixás e ainda moço assumi um alto posto no Terreiro. Sabe o que significa Ojuobá? Sou os olhos de Xangô, meu ilustre professor. Tenho um compromisso, uma responsabilidade.
 
 
Bateu na mesa chamando o garção. Mais cerveja para o professor, cachaça para mim:
 
 
– Se acredito ou não? Vou dizer ao senhor o que até agora só disse a mim mesmo e, se o senhor contar a alguém, serei obrigado a lhe desmentir.
 
 
– Fique descansado.
 
 
– Durante anos e anos acreditei nos meus orixás como frei Timóteo acredita nos seus santos, no Cristo e na Virgem. Nesse tempo tudo que eu sabia aprendera na rua. Depois busquei outras fontes de saber, ganhei novos bens, perdi a crença. O senhor é materialista, professor, não li os autores que o senhor cita, mas sou tão materialista quanto o senhor. Ainda mais, quem sabe?
 
 
– Ainda mais? E por quê?
 
 
– Porque sei, como o senhor sabe, que nada existe além da matéria mas sei também que, mesmo assim, às vezes o medo enche meu tempo e me perturba. O meu saber não me limita, professor.
 
 
– Explique isso.
 
 
– Tudo aquilo que foi meu lastro, terra onde tinha fincado os pés, tudo se transformou num jogo fácil de adivinhas. O que era milagrosa descida dos santos reduziu-se a um estado de transe que qualquer calouro da Faculdade analisa e expõe. Para mim, professor, só existe a matéria. Mas nem por isso deixo de ir ao Terreiro e de exercer as funções de meu posto de Ojuobá, cumprir meu compromisso. Não me limito como o senhor que tem medo do que os outros possam pensar, tem medo de diminuir
o tamanho de seu materialismo.
 
 
– Sou coerente, você não é! – explodiu Fraga Neto: – Se não acredita mais, não acha desonesto praticar uma farsa, como se acreditasse?
 
 
– Não. Primeiro, como já lhe disse, gosto de dançar e de cantar, gosto de festa, antes de tudo de festa de candomblé. Ademais, há o seguinte: estamos numa luta, cruel e dura. Veja com que violência querem destruir tudo que nós, negros e mulatos, possuímos, nossos bens, nossa fisionomia. Ainda há pouco tempo, com o delegado Pedrito, ir a um candomblé era um perigo, o cidadão arriscava a liberdade e até a vida, O senhor sabe disso, já conversamos a respeito. Mas, sabe quantos morreram? Sabe por acaso por que essa violência diminuiu? Não acabou, diminuiu. Sabe por que o delegado foi posto na rua? Sabe como se deu?
 
 
– Já ouvi contar, mais de uma vez. Uma história de absurdos com seu nome no meio.
 
 
– O senhor pensa que, se eu fosse discutir com o delegado Pedrito, como estou discutindo com o senhor, teria obtido algum resultado? Se eu houvesse proclamado meu materialismo, largado de mão o candomblé, dito que tudo aquilo não passava de um brinquedo de crianças, resultado do medo primitivo, da ignorância e da miséria, a quem eu ajudaria? Eu ajudaria, professor, ao delegado Pedrito e sua malta de facínoras, ajudaria a acabar com uma festa do povo. Prefiro continuar a ir ao candomblé, ademais gosto de ir, adoro puxar cantiga e dançar em frente aos atabaques.
 
 
– Assim, mestre Pedro, você não ajuda a modificar a sociedade, não transforma o mundo.
 
 
- Será que não? Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta da capoeira, o samba-de-roda, os afoxés, os atabaques, os berimbaus, são bens do povo. Todas essas coisas e muitas outras que o senhor, com seu pensamento estreito, quer acabar, professor, igualzinho ao delegado Pedrito, me desculpe lhe dizer. Meu materialismo não me limita. Quanto à transformação, acredito nela, professor, e será que nada fiz para ajudá-la?
 
 
O olhar se perdeu na Praça do Terreiro de Jesus:
 
 
– Terreiro de Jesus, tudo misturado na Bahia, professor. O Adro de Jesus, o Terreiro de Oxalá, Terreiro de Jesus. Sou a mistura de raças e de homens, sou um mulato, um brasileiro. Amanhã será conforme o senhor diz e deseja, certamente será, o homem anda para a frente. Nesse dia tudo já terá se misturado por completo e o que hoje é mistério e luta de gente pobre, roda de negros e mestiços, música proibida, dança ilegal, candomblé, samba, capoeira, tudo isso será festa do povo brasileiro, música, balé, nossa cor, nosso riso, compreende?
 
 
– Talvez você tenha razão, não sei. Devo pensar.
 
 
– Digo-lhe mais, professor. Sei de ciência certa que todo sobrenatural não existe, resulta do sentimento e não da razão, nasce quase sempre do medo. No entanto, quando meu afilhado Tadeu me disse que queria se casar com moça rica e branca, mesmo sem querer pensei no jogo feito pela mãe-de-santo no dia em que ele se formou. Trago tudo isso no sangue, professor. O homem antigo ainda vive em mim, além de minha vontade, pois eu o fui por muito tempo. Agora eu lhe pergunto, professor: é fácil ou é difícil conciliar teoria e vida, o que se aprende nos livros e a vida que se vive a cada instante?
 
 
– Quando se quer aplicar as teorias a ferro e fogo, elas nos queimam a mão. É isso que você quer dizer, não é?
 
 
– Se eu proclamasse minha verdade aos quatro ventos e dissesse: tudo isso não passa de um brinquedo, eu me colocaria ao lado da polícia e subiria na vida, como se diz. Ouça, meu bom, um dia os orixás dançarão nos palcos dos teatros. Eu não quero subir, ando para a frente, camarada"

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário