sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Umas palavrinhas sobre religião



"Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe" - Dunus Escoto, teólogo que viveu entre os séculos XII e XIV.


Saudações a todos! Vou iniciar este post falando uma verdade inconveniente, e que venho guardando há muito tempo: apesar de ter uma religiosidade, a minha fé no divino não é totalmente incondicional. Eu ainda creio, mas esta fé não é completamente cega e desprendida; ela precisa um pouco de fundamentos minimamente tangíveis para se sustentar...


No meu caso, eu tive algumas evidências: eu posso ver a manifestação visível das entidades que cultuo; posso conversar com elas, não de forma metafísica, mas naturalmente, do mesmo jeito que conversaria com um amigo num bar ou como estou agora aqui me comunicando através deste blog; pude ver alguns efeitos físicos inacreditáveis da manifestação das divindades (acredito que esse seja o ponto mais delicado, porque eu tento analisar racionalmente os fatos, mas até agora vejo que não há sugestão capaz de me dizer que é possível alguém segurar achas de carvão em brasa/apagar um charuto no céu de sua boca e não se queimar ou pelo menos ficar com alguma marca visível, ou que é igualmente possível alguém beber em poucas horas dois litros de pinga e não correr um sério risco de vida). Mas, afinal de contas, como estas evidências não podem ser controladas, isoladas e reproduzidas à vontade em um laboratório, com resultados invariáveis, elas não são insofismáveis, e assim seguimos a vida...


Pelo menos até o presente momento, no (até agora) restrito círculo de pessoas com quem convivo, lido e me comunico, há católicos, evangélicos, ateus, agnósticos, umbandistas e até mesmo budistas, não foram tantas as vezes em que fui pessoalmente achincalhado ou diminuído por causa de minha religião, e nas (algumas) vezes em que isto aconteceu a coisa não partiu de ninguém ateu ou agnóstico; inclusive, até onde eu pude notar, as manifestações mais eloquentes de apoio e de respeito à minha crença partiram, em sua maioria, de pessoas que não a comungam, não só da minha crença como de crença religiosa alguma. Mas ultimamente, tem ganhado força um papo de que a religião (a coisa é mais direcionada ao cristianismo, mas pode se aplicar a qualquer crença, mesmo à uma crença politeísta) é perniciosa ao ser humano, impedindo o pensamento crítico e racional... Enfim, que se você é de alguma foma religioso ou espiritualizado, você é um babaca obtuso, se comparado a quem é ateu...


Em primeiro lugar, vamos deixar claro que ninguém gosta de ser visto como ou ser chamado de babaca; as pessoas podem tolerar as mais radicais revoluções no que for, mas se estas revoluções mexerem em um milímetro na superestrutura fundamentadora de seu cotidiano e de sua vida privada, elas começam a resistir e a chiar. E em segundo lugar, acreditamos que a religião, em si, é como a física e a química: não é algo bom nem ruim em si... 


Durante todo o período colonial e ainda por um um bom par de décadas depois da independência, talvez mesmo até alguns anos depois da proclamação da república, ordens religiosas católicas (tanto regulares como leigas) foram as criadoras e mantenedoras das únicas entidades prestadoras de assistência social que existiam no Brasil, numa época em que inexistiam políticas públicas deste gênero. Mas a Igreja também tem uma ligação muito antiga com as forças conservadoras desta nação... A mesma Química que auxiliou na descoberta da penicilina também nos legou o DDT e a talidomida, e a Física que tão fundamental foi e é para a compreensão da realidade universal foi o berço formativo dos criadores das armas atômicas... Ou seja, tudo depende do uso que se faz da religião e das ciências da natureza...


Qualquer religião será digna de censura se for usada pra justificar preconceitos, manter injustiças sociais ou mesmo se ela se pretender "científica"... A ciência moderna tem pouco mais de 500 anos, e as religiões mais seguidas do mundo não têm menos de 1600 anos; portanto é uma grande impostura dizer que o conhecimento religioso (como, por exemplo, a doutrina criacionista) é sustentado pela ciência. Por outro lado, o conhecimento científico de que dispomos sobre a vida e sobre o universo ainda não dá, e talvez nunca dê, conta de solucionar todos os questionamentos e desafios pelos quais passamos. Isso sem contar que coisas como o racismo, a homofobia, a eugenia, o higienismo, o darwinismo social e a gentrificação dos espaços urbanos já tiveram seus dias de verdade científica universal... E todos pensam que isso tudo que eu citei é coisa de nazista...


Negar o papel da religião na história, nas sociedades e nas culturas humanas é uma prova de quanto desconhecemos por completo esta mesma história, cultura e sociedade. Ou melhor dizendo, de quanto somos pretensiosos em achar que só porque fizemos algumas (milhares de) leituras, ou porque possuímos o domínio dos métodos e do referencial teórico de alguma ciência, que compreendemos e conhecemos os rumos da história humana... Como se o conhecimento, e mesmo a humanidade, fossem estáticos e nunca mudassem... Que, sabemos, melhor do que a maioria das pessoas, o que é melhor para elas. Que, afinal, estamos quase chegando no ponto de fazer com que uma filosofia de vida se torne uma "contra-religião" (Se nos já fizemos isso com o positivismo e o kardecismo, por que razão não poderíamos fazê-lo com o ateísmo e até mesmo com o agnosticismo - seria até mais fácil com este último???) E, da mesma forma, achar que a religião pode suplantar a ciência e o conhecimento humano é fechar os olhos para a realidade dos últimos 500 anos da história universal... Quão atrasado e covarde é usar a fé no divino para justificar e sustentar os mais perniciosos e censuráveis preconceitos!


Por trás disso tudo creio que há uma verdade inconveniente: numa democracia, cabe aos cidadãos escolher o que é melhor para suas vidas. E se eles estiverem fazendo em determinado momento as escolhas menos acertadas e racionais, eles devem perceber e sofrer por si próprios as implicações de suas escolhas, e não serem guiados pela intelligentsia que, afinal de contas, sabe mais do que ninguém o que é melhor para a coletividade. Pode ser um processo lento e doloroso, mas isto é a democracia, meus caros! 


Enfim, é uma discussão entre quem tem razão e quem tem razão, entre pessoas que estão a um só tempo cem por cento certas e cem por cento equivocadas. Mas acredito que ambos os lados necessitam desarvorar um pouco de suas razões, pois que coisa mais arrogante se julgar possuidor de todas as certezas sobre a vida, o mundo e o universo, não é mesmo??? Falamos tanto em tolerância e em aceitação do Outro, mas pouco a praticamos, e quando a praticamos, o fazemos de maneira a estabelecer relações desiguais de hierarquia entre nós, os tolerantes, e o Outro, alvo de nossa benevolente tolerância...


Pra finalizar, vou botar aqui a música "Alucinação" do Belchior (cara que ouvi até cansar na  minha infância, no toca fitas do carro da família), que ilustra bem a minha postura sobre esta e outras questões... Poderia dizer que é um dos meus hinos particulares (os negritos na letra da música são meus, e acredito que sejam os versos mais eloquentes dela):


"Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Nem em tinta pro meu rosto
Ou oba oba, ou melodia
Para acompanhar bocejos
Sonhos matinais...

Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente
Romances astrais
A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais...


Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais...

Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai
Do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!...

Cravos, espinhas no rosto
Rock, Hot Dog
"Play it cool, Baby"
Doze Jovens Coloridos
Dois Policiais
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida...

Mas eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Longe o profeta do terror
Que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais
Amar e mudar as coisas
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais..."



E chega de papo, pois, como diz a letra, afinal de contas o que vale mesmo é amar e mudar este largo mundo!

domingo, 18 de novembro de 2012

Raça Brasileira - 1985



01. Raça Brasileira; 02. Leilão; 03. Maravilhas do amor; 04. Feirinha da Pavuna; 05. Mal de amor; 06. Santa paciência/Bamba de berço; 07. Garrafeiro; 08. Pingueira; 09. Ingrata paixão; 10. Pomba rolou; 11. A vaca; 12. Pedra no caminho/Bagaço da laranja.


Saudações a todos! Finalmente venci a preguiça e farei uma resenha (coisa de leigo, vocês já sabem) sobre um dos mais famosos "pau de sebo" da música nacional... Pra quem não sabe, "pau de sebo'' é uma gíria da indústria fonográfica, que designa nada mais, nada menos do que uma espécie de coletânea onde se lançam vários artistas iniciantes (com cada um cantando em uma ou duas faixas, geralmente), a título de teste de popularidade. O apelido vem de uma série de coletâneas de músicas de festa junina (nordestina, principalmente) que a CBS lançou durante alguns anos (15 volumes, entre 1967 e 1981), e que tinha o nome de "Pau de Sebo", daí esta gíria designar o tipo de disco que eu citei...


E alguns desses "paus de sebo" ficaram muito famosos, e deram origens a outros volumes... Temos, por exemplo, os três discos do "Roda de Samba" lançados pela CID, e este LP que ora resenho teve ainda duas continuações (que nem de longe chegaram na originalidade e na qualidade deste), e teve o mérito de revelar ao grande público dois grandes nomes do samba: Zeca Pagodinho e Jovelina Pérola Negra. É bem verdade que ainda participaram do LP Mauro Diniz (filho de um dos maiores - se não o maior - sambista vivo da Portela, Monarco, e compositor de vários sucessos de Zeca Pagodinho), Pedrinho da Flor (lançou uns dois ou três LPs solo, ainda é um grande compositor e foi durante alguns anos intérprete do Império Serrano) e Eliane Machado (lançou ainda uns dois LPs solo bonzinhos e depois sumiu, o que foi uma pena), mas foram Zeca e Jovelina que realmente fizeram sucesso... Podemos até dizer que o pagode nasceu com este disco (já haviam grupos como o Fundo de Quintal, Almir Guineto e Jorge Aragão já haviam começado a sua carreira solo com relativo sucesso e o Zeca já tinha composições suas gravadas por outros intérpretes, mas podemos dizer que o pagode, e por extensão o samba, foi jogado durante alguns anos na ponta do mainstream a partir deste disco).


E justamente pelo fato de ter colocado em evidência dois dos maiores ícones da geração que não só nos ensinou a gostar de samba, mas que revolucionou o ritmo nacional (ao introduzir novos instrumentos na sua base, e lhe dar um andamento mais rápido e alegre). A partir deste disco, o samba foi novamente alçado às paradas de sucesso; sob a batuta da RGE, bons discos do gênero foram produzidos, e vários nomes puderam chegar ao disco (pena que nem todos se firmaram). E por incrível que pareça, esta geração é criticada até hoje por muitos puristas: é difícil falar sobre isso, mas o samba tem inúmeros preconceitos exclusivistas, sobretudo quando cria a figura do "bamba" e quando concentra seus instintos puristas em quatro ou cinco artistas tidos como "mestres"; se você não tem a sorte de ser um "bamba" ou veio depois dos mestres, você não é bem-vindo para os puristas, ainda que essa geração tão criticada por eles tenha sido e muito inspirada pelos antigos, sobretudo na divulgação da obra destes... E o Zeca Pagodinho ainda está ai na ativa (embora um pouco decadente), como nome mais popular do samba, embora a Jovelina tenha sido tão cedo retirada da presente vida por um infarto (aos 54 anos, em 1999). Pelo menos agora ela está versando em outros planos...


Enfim, é uma obra que, apesar de não ser genial, é bastante bonita e agradável de ser ouvida, principalmente por ser um marco na história do ritmo nacional que é o samba... E eu, que nasci no mesmo ano da obra, sinto-me orgulhoso em afirmar que nasci junto com o pagode...  E, como diz a faixa escolhida pra a degustação:


"Tira a viola do saco
E afina o cavaco 
Por favor
Que o samba é um remédio
Que cura o tédio
E o mal de amor"


Para ouvir a faixa 04, "Mal de amor", na interpretação de Mauro Diniz, clica no vídeo aí embaixo:  


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Vº Festival Nacional de Cantigas de Umbanda (1975), ou Isto é que é Umbanda (1977)


Capa original do disco


Capa da reedição, em 1977


01.Hora de Rezar; 02.Pedra Lírio de Xangô; 03.Flores de Obaluaê; 04.O mundo encantado de Janaína; 05.O canto de Tupi; 06.Irôco; 07.Ressurreição; 08.Toada de Boiadeiro; 09.Vovó Chica; 10.Festa do Caboclo Folha Verde; 11.Venham as Crianças; 12.Prece a Tupã.



Saudações a todos! Vamos de novo atacar com aquilo que mais sabemos fazer aqui nesse blog: resenhas cagadas e mequetrefes sobre obras bem feitas e agradáveis. E dessa vez vamos com uma obra importante para a música umbandista: o LP com as cantigas vencedoras do quinto festival nacional de cantigas de Umbanda, realizado em 1975 (aliás, não sei porque dizer "nacional", uma vez que não só esses festivais eram realizados no Rio de Janeiro como todos os templos vencedores eram de lá)...


Mas afinal, o que eram esses festivais??? Eles tinham o objetivo de promover não só uma competição musical entre os templos que participassem desse evento (e onde as cantigas mais apreciadas seriam gravadas em disco), mas de ser um momento onde o maior número possível de comunidades religiosas estivessem reunidas, compartilhando os seus saberes musicais... Vale lembrar aqui que a música umbandista pode ser dividida em dois cortes: as cantigas de "raiz" e as cantigas de "louvação". Já expliquei aqui em outra postagem a diferença entre elas, mas não me traz cansaço explicar que as cantigas de "raiz" são ditadas diretamente pelas entidades espirituais e possuem um fundamento mágico-religioso por trás delas, enquanto as de louvação, apesar de serem inspiradas pelas entidades, e tem o intuito de, como diz sua designação, apenas de louvar e saudar as entidades a que se dirigem. E há ainda as composições profanas que contam apenas com o gênio de seu autor, mas pra falar das coisas do santo em música profana é preciso cuidado extremo e um zeloso respeito pelas coisas sagradas...


Zelo este que tem faltado nos atuais festivais de música umbandista, onde as composições inspiradas pelo mundo astral ou mesmo aquelas feitas profanamente com esmero tem perdido espaço para sambas-enredo ruins onde dão um jeito de enfiar no meio os nomes das entidades... E o que é pior, os caras pensam que estão louvando o orixá ou o guia espiritual, mas estão sendo ofensivos com eles, seja, por exemplo dizendo que tomarão uma cerveja com Zé Pelintra num bar, ou que Exu desceu do morro pra trazer maconha pro pessoal "dar um pega" no terreiro... Não digo nada das implicações espirituais que isso traz ao levarem tais composições para dentro de um espaço religioso, mas sim falo do completo mau gosto das músicas... Vemos os CDs de um "Atabaque de Ouro" da vida e das 20 faixas que normalmente o CD tem, não podemos aproveitar mais do que três... Além dos problemas que eu citei, há dois que eu considero bastante graves:


O primeiro é o fato de que os atuais festivais perderam o sentido que originalmente tinham, de reunir numa competição o maior número possível de comunidades religiosas, que bem ou mal de alguma forma trocavam seus saberes musicais e religiosos, ao apresentar seus pontos na competição. O que vemos hoje em dia é uma disputa de vaidades entre escolas de curimba e alguns templos mais famosos, como se fosse um desfile de escolas de samba. E onde os vencedores quase sempre são os mesmos, e onde o que é valorizado é apenas a habilidade artística de quem está tocando, cantando e/ou compondo, e não a mensagem espiritual que ele está querendo passar. O segundo problema é o fato de que grande parte da tradição musical umbandista está se perdendo, e o fundamento religioso contido na música é de primordial importância para o ofício religioso umbandista e até mesmo para o funcionamento e a existência do templo enquanto comunidade religiosa.... Até me imagino já velho (se eu  alcançar a velhice) sendo interpelado pelos meus netos perguntando: "Vô, como que é aquele ponto de preto-velho que o senhor canta de vez em quando?"E lá irei eu puxar pela memória e cantar aquela velha cantiga há muito tempo esquecida...


E este disco que resenho é um dos últimos festivais "primitivos", com cantigas de louvação ainda hoje usadas dentro dos templos, como as dedicadas a Xangô e a Obaluaiê. Não chega a ser um disco genial, mas é um disco que nos faz desejar que este espirito de integração religiosa retorne aos festivais de música umbandista... Vamos parar por aqui que pra escrever isso foi um parto de quadrigêmeos...


Para ouvir a faixa 10, "Festa do Caboclo Folha Verde", é só clicar no vídeo aí embaixo:



quarta-feira, 10 de outubro de 2012

As desilusões da vida acadêmica


Eis aí a coisa mais acadêmica que tenho feito de uns tempos pra cá: aumentando meus conhecimentos sobre música umbandista...  Esse LP aí, apesar de ser particularmente raro e cobiçado por colecionadores (se você é um e viu essa foto, aviso que ele NÃO está à venda!), não é bonito nem genial; é uma coletânea de músicas de inspiração umbandista que o J.B. de Carvalho (famoso cantor da Época de Ouro da MPB) lançou anteriormente em discos de 78 rotações.... Mas o autor tem o mérito de ter sido um dos primeiros a fazer sucesso na gravação de temas umbandistas (paralelamente a uma carreira profana de relativo sucesso), e de ter sido pioneiro em demonstrar a ponte existente entre a música popular brasileira e as religiões de matriz africana....


  
Um dia desses, eu falei a alguém que estava (e estou) desiludido com a História... Justo agora, que estou a um passo de concluir minha licenciatura… Falei a este alguém (e ainda comungo um pouco desse pensamento) que, de certa forma, a História é uma ciência sem futuro, porque quase nunca conjetura sobre o futuro, mas sim sobre o passado através da visão do presente, dentro de um corte temporal determinado… Que, enquanto ciência, ela ainda está muito presa dentro de sua metodologia e de seus fetiches; aquela coisa de que Bloch e Febvre puseram há 80 e poucos anos atrás no editorial do primeiro número da revista dos Annales, de “levantar-se contra os temíveis esquemas historiográficos”, ainda está por se fazer dentro da historiografia… Ainda existe, dentro da ciência histórica, uma dificuldade (pra não dizer resistência teimosa) muito grande pra se lidar com fontes não-escritas, embora se fale muito da importância de se usar a tradição oral, ou mesmo os elementos da cultura material e até mesmo imaterial enquanto fontes históricas. Isso sem contar que o processo que transformou a História numa ciência independente das demais ciências humanas praticamente cortou as possibilidades de diálogo da História com as demais ciências...


Pelo amor de Deus, manos meus, eu não quero com isso dizer que a ciência histórica e o estudar História não são relevantes! Muito pelo contrário; é fundamental admitir antes de mais nada que a humanidade e as sociedades são fruto de um processo histórico, e que só puderam existir e se desenvolver enquanto investidas de um caráter histórico e de condicionantes históricas... Entretanto, por essas razões que citei (e por muitas outras mais), vejo que a História, como futuro acadêmico e de pesquisa, não dá mais pra mim, e isso eu percebi quando estava escrevendo meu tcc…


Que, como certamente eu já devo ter falado pelo menos alguns milhares de vezes (e não me traz cansaço repetir isso), versou sobre a música umbandista na ótica do patrimônio cultural imaterial (uma disciplina ainda nova dentro da História). O único grande trabalho de pesquisa que fiz em toda a minha vida foi alvo de descrédito e chacota (muito embora eu tenha recebido um 10 de meu orientador – de 40 trabalhos, só 5 levaram um 10 do orientador; tive colegas que se dedicaram a pesquisa de um tema desde o começo da graduação com um único orientador e não levou esta nota - não direi quem são nem o que estavam pesquisando porque senão serei emasculado em praça pública! - Pelo menos de uma coisa que fiz na vida eu tenho o direito de me orgulhar, não é mesmo???) apenas porque meu trabalho não está definido dentro de um corte temporal preciso, e nem se prende nas velhas amarras e fetiches da historiografia….  E, principalmente, pela falta de uso de fontes escritas... Mas ora, se o trabalho está baseado nas problemáticas da cultura imaterial, e está usando como fontes elementos da cultura imaterial, como ele pode ser baseado em documentos escritos??? Tá certo que utilizamos obras escritas, mas apenas pra fundamentarmos as premissas levantadas pela nossa pesquisa, e não para serem nossas fontes!


Mas vale confessar, entretanto, que esta não foi minha única desilusão acadêmica: a primeira foi logo no primeiro semestre da licenciatura, quando descobri que filosofia, essencialmente, pouco ou nada tem a ver com aquilo que fazemos numa acalorada conversa de bar entre amigos, onde conjeturamos sobre os mais diversos assuntos (Isto é, que, a rigor, não existem "filósofos de botequim", e muito menos "filosofia de bar"). Sim, a filosofia ainda tem este sentido de investigação/especulação sobre a realidade universal, mas ela está muito mais preocupada em analisar os argumentos e as teorias sob o crivo da lógica (nesse sentido, qualquer teoria, mesmo sendo a mais reacionária, é perfeitamente válida se estiver encadeada dentro dos princípios da lógica - que, como sabemos, é um ramo da matemática) e de organizar e delimitar tudo em categorias definíveis (por exemplo: se eu usar o termo "belo", devo explicitar que conceito de "belo" eu estou usando. Se é o "belo" de Aristóteles, de algum pensador humanista do Renascimento, etc.). É espantoso saber que a mesma Filosofia que inicialmente pretendeu abarcar todos os ramos do conhecimento humano é uma das principais responsáveis pela divisão deste mesmo conhecimento em áreas específicas e separadas entre si...


E acabo de sofrer mais um baque, ao descobrir que, por uma exigência burocrática, não poderei iniciar minha pós-graduação imediatamente após o término de minha licenciatura... Eu fui, por curiosidade, visitar a página do programa de pós-graduação em Sociologia da USP (que, para mim, tem linhas de pesquisa que vão de acordo com meus interesses acadêmicos). E, ao ver o edital do último processo seletivo para o mestrado nesse programa, descubro que o número de vagas para as linhas de pesquisa que me interessavam  (Sociologia da Religião) é restrito (2 professores, uma vaga pra cada um), e que há uma prova de proficiência de línguas na qual é exigida uma tradução precisa e um texto no idioma escolhido pelos candidatos (inglês, francês ou alemão), não sendo permitidas "traduções livres"... Pois bem, é bem verdade que, numa pós-graduação, você não pode deixar de ler uma obra ou um autor importante apenas porque esta obra ou o autor não foram traduzidos ainda para o português (ou porque a tradução está porca, por não ter sido feita por um especialista na área ou no autor), mas o que significaria exigir uma tradução precisa??? Tá certo que o meu inglês não é bom, mas eu creio que consigo ler com um mínimo de segurança qualquer texto, ainda que eu precise ser acompanhado por dicionários ao meu lado (o "comum" e o de verbos), mas uma tradução exata e precisa.... Os caras estão dispensando dessa prova quem apresente certificados de proficiência, mas os testes para obtê-los são caros pra cacete...


Se bem que todo mundo sabe que, oficiosamente, os lambe-saco de professor, preparados desde cedo por estes para se dedicar à pesquisa, recebem um "tratamento diferenciado" na prova de proficiência, ou na entrevista com a banca... Puxar saco de quem quer que seja, seja qual for o motivo, é algo que eu tenho como profundamente execrável e digno de feroz censura. E, a rigor, o cenário é este: os puxa-sacos são preparados dede o começo da graduação pra se dedicar a pesquisa, e o resto é preparado pra consumir sua vida , sua saúde e sua inteligência no magistério do ensino básico... E, quando fui ver quais eram as pesquisas que os alunos do programa estão desenvolvendo, fui assaltado da seguinte dúvida quanto a algumas coisas que pude ver: "Meu Deus, será possível que essa gente está recebendo dinheiro público pra fazer durante 3, 4 anos, uma pesquisa porca sobre um tema que não tem a menor relevância social, ou que pouco contribuiria para a renovação temática e metodológica da área??? (Espero estar enganado)....


Enfim, é relativamente duro constatar que aquilo que você pensava que seria a grande chance da sua vida, em termos de crescimento e progresso pessoal e social, está se tornando na maior decepção dela... Ainda vejo um futuro para a História como disciplina do ensino básico, e ainda acredito que vou dar uma de self-made-man e conseguir heroicamente saltar por cima de todos os obstáculos que se impuserem aos meus sonhos de um futuro  acadêmico promissor. Quem sabe tudo esteja como na seguinte frase de Amós Oz, celebre escritor israelense de que compartilhei um texto aqui nesse blog: "Tudo que está baseado apenas em um sonho fatalmente tende a se tornar uma cruel decepção"...

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Poema em linha reta, por Fernando Pessoa (no alter-ego de Álvaro de Campos)

Álvaro de Campos em espelho, na visão de Almada Negreiros (multiartista português)


(Os negritos são meus)


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Grupo Zambo - Bahia, Grupo Zambo - 1976


01. Catendê (Louvação ao Deus da Folha Ossain); 02. Sirrum (Axexé de homenagem aos mortos); 03. Kiningé (Louvação a Rainha do Mar); 04. Aguemarina (Louvor a Ossain); 05. Dialeto; 06. Giló; 07. Iúna (Homenagem a Mestre Bimba); 08. Salomão (Homenagem a Mestre Pastinha); 09. Origens; 10. Reza da Noite e Durê (Candomblé Angola).


Saudações a todos! Vamos mais uma vez fazer uma resenha mal feita sobre música (extremamente) bem feita... Afinal,este blog sempre foi, nos três anos que está no ar, um espaço onde sempre se defendeu mais deslavada laicidade em todos os assuntos, não é mesmo? E vamos mais uma vez com um disco que do começo ao fim transpira brasilidade, "Bahia, Grupo Zambo" (pra quem não sabe, "zambo", em alguns países hispânicos, é o equivalente de "mulato"; algo que vai ao encontro daquela idéia freyreana - muito em voga nos tempos passados, mas hoje desacreditada por causa da carga de racismo nela contida - do mulato/mestiço enquanto representante maior da brasilidade).

É um disco de música tradicional baiana (ou, pelo menos, de belas fantasias musicais embasadas nos temas da música baiana). Como eu creio que os leitores devem saber, a Bahia (talvez por Salvador ter sido a primeira capital brasileira) nos forneceu as bases formadoras do que chamamos "cultura brasileira" em inúmeros aspectos: na culinária, na religiosidade e principalmente na música; pra quem não sabe, o tão carioca samba nasceu nas casas das famosas "tias baianas", como Tia Ciata, que eram verdadeiros "pontos de cultura" onde podíamos encontrar as mais variadas formas de expressão da cultura negra do Brasil, nos primeiros anos do século XX. É, mais ou menos, como diria a contracapa deste LP: não reconhecer isso "é pecado mortal no mais elementar catecismo de brasilidade"


E, não custa frisar, essa matriz cultural é eminentemente negra e eminentemente mística; talvez por essa razão não houve até os dias de hoje muitas iniciativas firmes e consistentes que se dedicassem a preservá-la/estudá-la em todas as suas minudências, o que constitui um grave prejuízo não só para o entendimento do que seja a nossa cultura, mas também para o entendimento do "caráter nacional". E o presente disco parece preencher um pouco dessa lacuna, mostrando as origens daquilo que chamamos de "música brasileira", é  é uma obra agravel e melódia, apropriada para se ouvir em qualquer ocasião... Vou parar por aqui, pois a inspiração está me fugindo...


Para ouvir a faixa 06, "Giló", é só ir ao link aí embaixo:

sábado, 8 de setembro de 2012

Os males e agruras de se estudar as ciências humanas

Esse aí é um dos livros mais perturbadores que já li de uns tempos pra cá. Não que eu concorde com tudo o que vai em suas linhas, mas é um livro altamente recomendável a todos que um dia sonharam em ser professores...


Estou também em uma fase na qual estou procurando ler mais livros doutrinários da religião que sigo... O que é algo deveras complicado, uma vez que a religião umbandista não possui um ritual e uma doutrina única. Pegamos os livros dos autores mais populares e filtramos o que de melhor e mais adequado à nossa prática religiosa houver, pois esse é o jeito. E sim, eu uso óculos porque tenho hipermetropia e astigmatismo em grau já avançado...


Saudações a todos! Há poucos dias atrás, uma amiga (a quem devo boa parte dos acessos que este blogueizinho de meu Deus [mês passado completamos três anos no ar; foram três anos de inaudita ousadia em lançar este penico de elocubrações sem nexo ao mundo, mas também foram três anos dos quais bastante me orgulho do que fiz; não me arrependo de ter feito nada do que fiz e/ou escrevi com e para este blog]  teve do começo do ano pra cá, em virtude do jabá grátis que ela faz dele; não sei se a recíproca está sendo verdadeira, uma vez que também retribuí esse jabá) publicou o seginte texto em seu blog: http://miocitos.wordpress.com/2012/09/05/eu-tenho-uma-teoria-o-pessimista-e-mais-humano/


Como eu acho que os amigos leitores puderam notar, o texto é bastante perturbador, sobretudo ao revelar uma verdade inconveniente: o pessimismo não é apanágio exclusivo de caras como Pascal, Machado de Assis, Augusto dos Anjos ou os românticos do "mal-do-século" (como Álvares de Azevedo); talvez seja a atitude mais racional a ser tomada neste mundo tão louco em que vivemos (no qual tenho cada vez mais assentada a convicção de que não sou originário; talvez eu tenha chegado aqui ainda bebê numa nave provinda da estrela de Kolob, juntamente com o deus mórmon!). No entanto, vejo ainda algumas coisas neste texto que me deixaram igualmente perturbado e das quais eu não poderia deixar de dizer algumas palavras (até por que eu prometi fazer isso a ela; por falar nisso, não deixem de ver o resto do blog dela -tanto pelo conteúdo das postagens como pela autora, uma mulher lindíssima e inteligente - claro que uma pessoa com tais predicados só poderia estar estudando História!):



A primeira constatação pertubadora é a mais óbvia de todas, e que está precisamente contida em uma frase que parafrasearei de Leandro Karnal, um dos poucos historiadores apaixonados por seu ofício neste país: É tão frustrante saber que existem neste mundo contemporâneos (muito) mais inteligentes do que você, e que demonstram sua superioridade na capacidade que temos de compreender e admirar as emanações de sua inteligência (a ironia comeu solta aqui, mas não podia deixar escapar a oportunidade! As leituras de Voltaire me fizeram um irônico doentio) E a segunda diz muito respeito a uma coisa que geralmente ocorre quando começamos a estudar em nível superior: o enfraquecimento do sentimento religioso diante das evidências de que as religiões, de maneira geral, já não têm seu sustentáculo na racionalidade, e que a religiosidade é uma expressão da falta de maturidade das pessoas, ou do conservadorismo da sociedade...


Ora, meus senhores, antes de me tornar umbandista (eu já disse isso várias vezes, e vou torturá-los com essa história quantas vezes eu achar necessário, portanto se conformem!) eu fui um menininho decente, cuja avó o levava pela mãozinha até a igreja, que estudou todo o ensino fundamental numa escola adventista e que até adentrar num terreiro de Umbanda pela primeira vez em sua vida era uma pessoa bastante ativa na paróquia perto de sua casa, como membro da equipe de liturgia e da pastoral da juventude. E eu me decidi pela Umbanda no mesmo ano que ingressei na Universidade Federal de São Paulo pra estudar História (eu cheguei a fazer uns três semestres do mesmo curso numa faculdade particular, mas tive que parar porque eu era bolsista - obtive esta bolsa por ter sido o primeiro colocado no vestibular da instituição -  e no segundo ano a bolsa simplesmente se acabou). Até o presente momento, não me arrependi de absolutamente nada do que fiz, pensei ou escrevi na ou pela Umbanda. Muito pelo contrário: pude conhecer amigos pelos quais hoje eu tenho consideração de irmão; frequentei excelentes (muitas das quais, apesar de humildes) festas, onde tomei saborosas cachaças e me banqueteei com as mais variadas e deliciosas comidas; conheci lugares e passei por excelentes experiências pelas quais dificilmente teria passado de outra forma; recebi conselhos muito úteis para a minha vida prática, e o devido consolo e orientação nos períodos mais difíceis... E escrevi o único grande trabalho de pesquisa acadêmica que fiz (até agora) em toda a minha vida...


Ou seja, não acredito que a religião faça as pessoas ficarem conservadoras ou conformistas (embora seja o abrigo no qual a maioria - se não todos - os conservadores e conformistas natos se escudam). E acredito menos ainda que a religião seja perniciosa à racionalidade e ao pensamento ético. Ainda mais a Umbanda, uma religião que preza por ser uma religião do tipo "faze o que tu queres, pois é tudo da lei!", mas aguente as consequências depois 
(oras, tudo traz consequências, até passar os dias imóvel num canto!), e que praticamente só exige que você dedique uma pequena parte de seu tempo a louvar as divindades em seu ritual. 


É claro que ela tem seus defeitos: a) ela ainda não se unificou em termos rituais e doutrinários: por um lado, isso preserva a diversidade dentro da religião, mas por outro dificulta que você faça estudos mais consistentes sobre a religião; os principais autores umbandistas não só são conflitantes entre si como como conseguiram cristalizar rivalidades em torno de suas obras e das formas defendidas por eles de se praticar a religião. b) existe muita vaidade e rivalidade entre diferentes sacerdotes, e entre praticantes da religião dentro de um templo; o livro "Guerra de Orixá" é emblemático neste sentido, uma vez que esta vaidade faz com que a religião deixe de ser coesa e fique mais vulnerável aos ataques de seus detratores, sobretudo os evangélicos neopentecostais; c) a religião está eivada de pessoas que usam o seu nome (melhor dizendo, se escondem atrás dele) para explorar a boa-fé pública, prometendo milagres impossíveis e extorquindo dinheiro a rodo; d) o mais forte dos defeitos: não existe muita gente jovem praticando a religião (ou se assumindo como umbandista), com exceção daqueles que nascem e/ou vivem num lar umbandista. Eu, com quase 30 anos, era até há algum tempo atrás um dos mais jovens filhos de santo do templo em que me iniciei. E, como sabemos, qualquer religião não pode subsistir sem que a juventude esteja nela presente, não só a praticando, mas refletindo criticamente sobre ela e a enriquecendo. Corremos até o risco de, em quatro ou cinco gerações, a Umbanda desaparecer enquanto prática religiosa autônoma. Mas, ao que parece, estão começando a aparecer esforços para reverter esse quadro...


Talvez eu ainda esteja dentro desta religião porque o que eu busco é um contato mais direto com a espiritualidade (que, na verdade, é muito mais uma busca interior do que exterior; lembremo-nos do velho ditado que quem não tem dinheiro para análise, vai pra macumba), e também procuro entendê-la como portadora de um universo cultural (musical, principalmente) que lhe é próprio, e que não existe mais em nenhuma outra sociedade ou religião. Talvez este segundo aspecto seja o que mais me atraiu na religião, e me sinto também um tanto como guardião de uma minúscula e infinitesimal fração desse riquíssimo universo cultural...E vejo pela minha experiência que isto não embotou o meu discernimento da realidade, ou fez de mim alguém conservador ou conformista... Só acreditamos que há momentos da vida (não são todos!) em que "desligar o cérebro", ou se conservar em estado de não qualificar nem prejulgar a realidade são coisas benéficas e salutares; a santa Ciência e a santa Razão já deram provas sobejas de não serem suficientes para sanar todas as mazelas do universo, simplesmente por um motivo: o conhecimento sobre a vida e sobre o universo é sublime demais para ser encerrado em um único livro (ou num grupo restrito de livros), em uma única teoria (ou mesmo num conjunto reduzido delas) ou mesmo na cabeça de uma única pessoa (ou até mesmo num seleto grupo de pensadores)... 


Outra coisa que foge um pouco do texto de minha amiga, mas que eu não poderia deixar de comentar é algo que eu percebo bastante nos cursos de humanas: parece que, ao escolher esta área, somos investidos de uma pétrea obrigação moral de consertar o mundo. Tudo o que fazemos num curso de humanas tem que ser como uma preparação que ao fim e ao cabo nos dará o instrumental necessário para fazer a tão sonhada (e necessária) revolução nos usos, nos costumes e na sociedade. E, como qualquer coisa que se faça por obrigação e não por interesse, esse dever moral é um pé-no-saco altamente frustrante, principalmente quando constatamos que não temos o poder sequer para alterar os costumes de nossa casa.


Ou mesmo quando entramos numa sala de aula (eu ainda não comecei minha carreira no magistério, mas trabalhei por quase 3 anos numa escola estadual como agente de organização escolar - e posso dizer que esta figura, juntamente com o agente de serviços, é a única indispensável para qualquer escola funcionar. Se o diretor não aparece, botamos o vice no lugar; se os professores não vem em determinados dias, botamos os eventuais ou fazemos a escola virar uma rua de lazer. Mas se um funcionário faltar, que caos não fica para os que têm de cobrir sua ausência! E se todos os funcionários faltarem??? Quem abrirá e fechará os portões nos devidos horários, quem fará a merenda para os alunos, quem limpará a escola, atenderá o público na secretaria e cuidará de todas as rotinas administrativas da escola??? Quem atenderá as mais variadas solicitações dos alunos e dos professores, quem zelará pela vigilância do ambiente e, não raro, pela integridade física dos que ali estão presentes??? Pena que o sindicato da categoria é chapa-branca e muito fraco, e não se manca do poder que tem nas mãos). 


O que pude constatar é que está cada vez mais complicado se dar aulas ou tentar compartilhar um mínimo de conhecimento com os alunos. Quem já tentou da maneira mais assertiva e polida possível fazer com que uma sala de aula com quase 50 pessoas se aquietasse por apenas um minuto e recebeu risadinhas de deboche como resultado de seu esforço, quem teve que aguentar calado toda espécie de chistes e gozações ditos por pessoas que não tem nem a metade de sua idade e se acham grandes sabichões para evitar problemas maiores (mesmo estando com uma resposta ferina na ponta da língua; o ECA está comendo solto no lombo do povo... É como diria meu avô em sua simplicidade: a lei só serve pra quem está errado), quem já foi separar briga de aluno e tomou uma pancada nas têmporas de deixá-lo desorientado por alguns minutos, entre muitos outros males, sabe bem do que falo... Mas, afinal de contas, o governo e os pedagogos de gabinete sempre saberão o que é melhor para alterar este estado de coisas, não é mesmo??? Talvez um dos problemas principais disso tudo seja a constatação de que, atualmente, não existe NENHUM (isso mesmo, NENHUM) curso de licenciatura neste país (e eu falo tanto das mais conceituadas universidades públicas como as mais estropiadas "Uniesquinas" da vida) que prepare adequadamente os licenciandos para inúmeras situações com as quais se depararão quando estiverem atuando em sala de aula. 


A formação de um professor neste país, via de regra, joga pouca ou nenhuma luz sobre temas como mediação de conflitos, psicologia de grupo, teorias do currículo e currículo oculto, bullying, violência doméstica, abuso de drogas, e por aí vai... A prática em sala de aula ainda continua sendo a grande formadora de um bom professor, e, muito mais que sua formação acadêmica, é uma grande fonte de subsídios para o seu trabalho. Outro problema grave neste sentido é a visão do magistério como sacerdócio ao invés de uma profissão, sacerdócio este para o qual existem em teoria pessoas dotadas e não-dotadas de vocação para exercê-lo. E se é um sacerdócio, não precisa ser bem remunerado; se é um sacerdócio, tem que ser exercido com amor de mãe e com um estoicismo de fazer inveja a Epicteto e aos primeiros mártires cristãos.. Tudo isso quando o magistério deveria ser visto como uma profissão que é, que envolve o uso de competências, saberes e habilidades para as quais basta ter interesse e boa-vontade para adquirir, e que antes de mais nada merece ser devidamente remunerada... Tá certo que um pouco de carisma e pendor inato também ajuda (e como!), mas não deve ser a base e o pré-requisito primordial para alguém se meter neste ofício!


Sinceramente falando, eu ainda tenho o desejo de ser professor apenas por uma razão: eu acredito que minha capacidade e o meu cultivo seriam mal empregados se eu os consumisse juntamente com o que ainda resta da minha juventude enclausurado até a aposentadoria numa repartição pública ou privada qualquer; acredito que ainda tenho algo a oferecer a este mundo. Uma oferenda simples, mas na qual estou disposto a por todo o meu vigor e a minha capacidade... Quanto ao pessimismo que é o mote central do texto de minha amiga, eu concordo (embora não integralmente) com ele... Quem sabe Brás Cubas não retorne das cinzas e finalmente crie o emplasto anti-melancolia??? Ou será que estes dois textos (o meu e o de minha amiga) não passam de chororô de escorpiano, que simplesmente adora ser visto como o gênio/mártir incompreendido (e aí entra o velho Chaves: "Ninguém tem paciência comigo!")??? Reflitam nisto, meus caros!


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Paulo Tapajós - Catulo, o Poeta do Sertão - 1957


01. Vai, ó meu amor, ao campo santo; 02. Sertaneja; 03. Clélia; 04. Um poeta do sertão; 05. O meu ideal; 06. Tu passaste por este jardim; 07. Talento e formosura; 08. Os olhos dela; 09. Rasga o coração; 10. Recorda-te de mim; 11. Templo ideal; 12. Palma de martírio.


Saudações a todos! Vamos desta vez retornar a crítica musical mequetrefe, comentando este velho LP, de composições de Catulo da Paixão Cearense, poeta muito famoso que teve seu auge nos anos finais do século 19 e nas primeiras décadas do século 20. E de quem já se disse certa vez que talvez tenha sido o único poeta do mundo coroado com todas as glórias típicas de seu mister enquanto foi vivo (viveu de 1863 a 1946); via de regra, a poesia ganha mais valor com a morte dos seus cultores; grande parte dos aclamados poetas (não todos, pelo amor de Deus!) quase não foram reconhecidos e/ou lidos em vida.


Mias propriamente falando, a fama de Catulo se deu por ele ter alçado o violão ( mais notadamente a modinha e a seresta com este instrumento; por muito tempo, o violão foi considerado um instrumento pouco nobre e carregado de estigmas sociais, e Catulo teria sido um dos primeiros a derrubar esta fama, sendo requisitado e bajulado por figurões da sociedade de seu tempo) a um patamar mais alto no conceito musical daquele tempo, bem como pelo primor de suas composições, onde tanto se podem notar construções de linguagem altamente exóticas (cousa muito em voga no seu tempo com a escola dita "parnasiana") como o uso da temática e do modo de falar regional (como podemos notar, entre outras, nas músicas "Luar do sertão" e "Cabôca de Caxangá"). Ou, como diria alguém, "[que] usou e abusou de toda a sonoridade que o sotaque nordestino [ele era maranhense de nascimento, e viveu parte de sua infância no sertão do Ceará] lhe proporcionou, soube colocar em versos simples onde era o lugar de por versos simples. Tinha faro. Sabia ouvir, como ninguém mais, o rumor da terra"


Pois bem, o que eu aprecio em sua música, e na música de muitos de seus contemporâneos, é a capacidade que eles tinham de colocar na música acentos poéticos parnasianos, cheios de construções de linguagem hoje em desuso (mas que não foram completamente extintas da língua portuguesa; em que lugares mais eu poderia escutar em música expressões como "álgida saudade", "seios alabastrinos", "lira austera", "momento evanizado", "lábios pulcros"??? Posso dizer que aumentei e muito meu vocabulário somente ouvindo música dos tempos de dantes; havia um programa na Radio Cultura AM de São Paulo, que era transmitido todas as noites, e que era inteiramente voltado a música dos anos 20 aos anos 50; este programa deixou de ser diário e passou a ser semanal - agora é transmitido nas manhãs de domingo, mas enquanto foi diário eu e meu irmão o escutávamos assiduamente, e chegamos a gravar várias fitas cassete com as músicas mais agradáveis das que eram veiculadas; muito da minha cultura musical vem desta atitude)


E mais: tenho a impressão de que em outros tempos a música brasileira era mais poética e mais cheia de beleza e sentimento do que hoje; os artistas e cantores compunham e cantavam com outro estado de ânimo: com o coração, como muitos gostariam de dizer (tanto que boa parte desta gente morreu de infarto, como diria um amigo piadista. Os que não enfartaram foram consuimidos pela tuberculose ou pela cirrose hepática, daí ele ter dito que ninguém morreu de amor, mas sim desta moléstia infecciosa que matou - e ainda mata - gente a rodo nos séculos 19 e 20)


Mas basta de churumelas, meu povo! Este disco tem o mérito de resgatar composições então esquecidas de um grande bardo, levando-as ao conhecimento das gerações vindouras, na bela interpretação de Paulo Tapajós. Oxalá um dia os músicos, cantores e compsitores dos tempos atuais resgatem essa poesia e este sentimento que estranhamente parece ter deasaparecido da música!


Para ouvir a faixa 08, "Os olhos dela, é só clicar no vídeo aí embaixo:

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Sobre a pinga e outras drogas (repostagem)

Eis a minha cachaça favorita: Rainha Paraibana... O rótulo vermelho já está de sobreaviso: 50% de etanol (já foi 54%!) não é pra qualquer juvenil! Já vi muitos cachaceiros experientes se engasgarem com um único gole desta bebida, enquanto este pobre indivíduo que vos fala é capaz de virar um copo americano num instante sem sequer piscar! Pelo menos de algo que eu faça devo me orgulhar, não?



Essa aí já é uma cachaça mais top; dizem ser a favorita do ex-presidente Lula... 03 anos de descanso em tonéis de bálsamo e um sabor incomparável, aromático e suave...Pena que custa tanto como uma garrafa de Green Label, mas é uma cachaça excelente...



Um registro da pior bebedeira da minha vida: 03 dias de dores de cabeça e de estômago, náuseas, vômitos e desarranjo intestinal... 03 dias que não desejo viver novamente!




E eis o que causou todos estes males que citei: um porre de Caninha da Roca, a pior pinga do mundo... Passe longe dela e de todas as cachaças de Rio das Pedras!




Quem diria que isto seria possível nos dias de hoje??? Uma criança de 05 anos tirar fotos com um cachimbo na boca???







Saudações a todos! Por que razões eu estou aqui a falar sobre a bebida típica nacional? Ora, pelo que vocês já puderam notar, eu sou um cara chegado no "absinto caboclo", por isso comecei esta postagem falando duas palavras sobre as cachaças mais marcantes que eu tomei: seja pela sua qualidade ou pela sua ruindade...


Creio que seja oportuno falar disso neste momento em que surge uma legislação que normatiza a produção dos aguardentes oriundos dos subprodutos da cana-de-açúcar, diferenciando a cachaça dos demais aguardentes de cana. Concomitante a isto, o processo de produção artesanal da cachaça está em vias de se tornar oficialmente (se já não se tornou) um patrimônio cultural imaterial de nosso país, que como tal deve ser documentado, registrado e preservado em todos seus pormenores. Entretanto, pouco se tem falado sobre os efeitos deletérios do consumo excessivo de álcool, que talvez seja mais danoso do que a maior parte das drogas ilícitas.


Em nossa cultura, como talvez na maior parte das culturas ocidentais, o consumo de álcool está fortemente ligado à passagem da adolescência para a vida adulta; uma das coisas que diferencia o adulto do adolescente é o fato de que o primeiro pode aparentemente consumir álcool a seu gosto sem atrair olhares de censura, enquanto o segundo tem que ficar quase que mendigando uma bicada no copo de cerveja ou de caipirinha do pai ou da mãe. Se ele se atreve a tomar mais de dois dedos de vinho espumante na passagem do ano ou daquele ponche gostoso numa festa, isso já é motivo para um longo sermão condenando tal atitude... Uma das transgressões mais excitantes da adolescência é o consumo de álcool clandestino.


Eu me lembro dos meus dois primeiros pileques, no tempo em que eu fazia o ensino médio numa escola técnica pública na Vila Maria. A primeira vez foi quando o pessoal foi num desses passeios de escola ver uma exposição sobre Napoleão que estava ocorrendo na FAAP, e que continha muitos objetos pessoais do dito cujo.


Na volta para a escola, dois pilantras tiraram da mochila algumas garrafas de refrigerante cheias de caipirinha, e que foram consumidas no caminho de volta. Ninguém bebeu uma quantidade muito grande de caipirinha, mas como todos estavam pouco acostumados ao consumo do álcool, ficamos bastante "alegres", e aparentemente não despertamos a suspeita dos professores que nos acompanhavam, pois já tínhamos fama de ser um pouco indisciplinados. Até hoje me lembro do pessoal contente por supostamente ter conseguido enganar os professores bem na fuça deles... Inclusive, a caipirinha que eu tomei até hoje me parece que ela tinha o gosto "especial" da subversão misturado no meio do álcool...


E na festa que organizamos para comemorar o fim do ano letivo, e por extensão o término de nossa passagem pelo ensino médio? Eis que de repente alguém saca de sua mochila uma garrafa de vodca barata, e incontinenti a misturam com o conteúdo de duas garrafas de coca-cola que já estavam pela metade. Asssim sendo, todos os presentes se serviram de belas lapadas de coca com vodca; a vodca era barata, mas fez efeito rapidamente: em instantes já estávamos "de fogo", acompanhados até mesmo pelos colegas mais comportadinhos.


Num momento em que a algazarra produzida por nós se tornou intolerável para os ouvidos das pessoas sóbrias, a coordenadora pedagógica da nossa escola foi ver o que estava acontecendo, e imediatamente farejou que todos estavam sob o efeito do álcool. Nesse instante, tive um lampejo de sobriedade e pensei com meus botões: "P.Q.P, a gente tá fodido!" Pra nossa sorte(?) toda a bebida já havia sido consumida, e a vodca, ao contrário da pinga, não deixa o hálito bucal ou o suor dos que a bebem com um odor acentuado; por esta razão, quando a mulher foi cheirar o hálito de um dos colegas pra ver se suas suspeitas se confirmavam, nada conseguiu obter e nos deixou em paz(?) novamente.


De resto, o que eu sei é que este dia foi um dos mais legais de todos esses quase 27 anos de existência; até hoje, quase dez anos depois desse fato, eu conservo comigo uma camiseta com os autógrafos dos colegas; eu dancei forró (ou pelo menos eu julguei que estava dançando, pois até hoje nem dançar cirandinha eu sei!) coladinho com a minha paixão da época...


Como vocês notaram, eu só falei de experiências boas de minha vida relacionadas ao álcool; não falei das besteiras que fiz na rua e dos perigos a que me expus quando estava embriagado, não falei das dores de cabeça que senti nos dias subsequentes à embriaguez, das vezes em que magoei meus familiares por eles me surpreenderem sob o efeito do álcool, como é horrível ter que ir trabalhar de ressaca, nem dos exemplos que presenciei das consequências do abuso do álcool dentro de minha própria família... Do mesmo jeito que na propaganda, eu relacionei o consumo da bebida às coisas boas da vida; vejam só essas duas propagandas de cachaça: www.youtube.com/watch?v=rN258QIedCo (meu avô gostava dessa pinga e minha vó usava essa cera pra lustrar os tacos do chão da sala e dos quartos) e www.youtube.com/watch?v=QNwD1BV1mNo&feature=related (o macaco cachaceiro; hoje em dia isso seria impensável).


Perceberam a sutileza? Uma música agradável seguida de um pedido de uma dose (houve quem comentou: "Ai tatu/Tatuzinho/Quando fecha a garrafa/Me abre o cuzinho") e um macaco esperto que pra esquecer as angústias de sua profissão vai buscar uma "quente", demonstrando mais sagacidade que seus donos, que queriam fazer ele montar em cima de um leão... Quando vamos nos dar conta, o mal já está feito e não conseguimos mais parar de beber, uma vez que fomos educados pra acreditar que a bebida está por trás das coisas agradáveis da vida...E talvez esse seja precisamente o mal; praticamente não existem, ou pelo menos são raros, os momentos de nossa vida particular e até mesmo pública em que o consumo de álcool não caia como uma luva: quando nos levantamos, quando vamos dormir, antes, durante e depois das refeições, numa festa ou numa conversa informal com os amigos, até mesmo antes ou depois de uma transa. Inclusive, em muitos desses momentos, se o álcool não estiver presente temos a impressão de que está faltando algo.


Até mesmo rezam os evangelhos oficiais que o primeiro milagre de Jesus Cristo foi transformar cerca de 240 litros de água em vinho (e eu tenho com meus botões que só não foi chope ou mesmo cachaça porque os antigos judeus desconheciam tais bebidas), muito embora os adventistas que me educaram durante todo o ensino fundamental teimassem em dizer que este vinho era o "suco de uva não-fermentado", o que para os leigos é simplesmente suco de uva puro... Pois bem, o que nos interessa dizer é que, uma vez instalado, o álcool não nos abandona mais e arranja um jeito de se imiscuir em todas as esferas de nossa vida, e tudo o que nos cabe fazer é administrar essa presença de modo que ela não nos atravanque a vida...Pois quem pode negar que uma dose de uma pinga de qualidade não é boa? Como negar que a tontura e a desibinição provocadas pelo álcool não são gostosas até certo ponto? Como quebrar com o costume de meus avós paternos (que são de uma região do interior paulista onde a presença italiana é muito forte; infelizmente eu não sou descendente de italianos) de botar uma garrafa de vinho suave na mesa por ocasião de qualquer refeição festiva?


Realmente o que temos que fazer é não nos deixar dominar pela bebida, como um irmão de minha mãe que em virtude do alcoolismo abandonou a mulher e seus dois filhos na miséria, causou muitos desgostos aos meus avós, se expôs a diversos perigos, estragou o clima de muitas festas de Natal (desde o ano em que meus pais se casaram, as festas de Natal sempre foram realizadas reunindo a família de meu pai e de minha mãe em minha casa, e nisso se incluíam meus tios, meus primos e em algumas vezes até a família dos namorados de ocasião das minhas tias solteiras; só depois de alguns anos eu fui entender porque meu avô materno sempre chorava nos dias de Natal; era sempre por causa de alguma que meu tio aprontava por causa da bebida) e por fim acabou, depois de longa disputa, tendo que ser interditado judicialmente para que fosse possível a sua aposentadoria por invalidez (por causa do abuso alcoólico, a parte do cérebro de meu tio responsável pela memória recente ficou permanentemente comprometida, e por esta razão ele agora não só parou de beber como tem que viver sob tutela alheia; como os distúrbios causados pelo álcool não são legalmente considerados suficientes para ensejar aposentadoria por invalidez, minha mãe teve que entrar com um processo judicial para interditar meu tio e assim ele poder se aposentar. Nesta semana, minha mãe obteve a interdição definitiva de meu tio, tornou-se sua tutora legal e possibilitou sua aposentadoria).


Pois bem, não obstante esse gritante exemplo, vamos tocando a vida com esse mal necessário... Mas e as outras drogas? Sobre as outras drogas, o que temos a dizer é o seguinte: eu também gosto de fumar cachimbo, tanto o fumo próprio para esse fim quanto o fumo de corda; o segundo, por seu odor relativamente desagradável, eu só uso em casa, e a minha relação com esta droga é quase a mesma que com o álcool: não fumamos em demasia, mas vamos tocando a vida sob a sombra deste vício. Pois é claro que o governo não está preocupado com as mortes causadas pelo fumo ou por qualquer outra droga, mas sim pelo gasto que as pessoas doentes proporcionam ao utilizar a rede pública de saúde pra se tratar destes males relacionados à intemperança.


Ora bolas, se há uma coisa que eu aprendi em 3 anos de funcionalismo público é que o governo, que mais do que ser a representação de todos os cidadãos se tornou uma entidade separada e acima destes, é e sempre será extremamente rico e poderoso, e que dinheiro, para o governo, nunca faltou e jamais irá faltar; o que acontece é que o dinheiro dos nossos impostos é, em sua maior parte, malbaratado em um sem-número de safadezas e inutilidades. Por povo que trabalha quase a metade do ano para pagar impostos e que deseja ver esse esforço revertido em benefícios, só as migalhas... Um exemplo disso é a quase ausência de políticas públicas voltadas para a recuperação dos que desejam abandonar o vício em qualquer substãncia. O que temos são iniciativas de ONGs, associações religiosas e o que a iniciativa privada oferece, mas público....


E quanto as drogas ilícitas? Eu devo dizer que a minha história com elas não é muito bonita; como eu já devo ter dito, os primeiros 7 anos de minha vida foram passados em sua maior parte ao lado da mãe de meu pai, que até hoje mora no bairro paulistano da Vila Maria. Quem conhece este bairro, sabe que é um bairro de "classe média baixa", ou onde moram mais pessoas da classe C e algumas da D, e que tem os seus bêbados e seus viciados em drogas.


Pois bem, quando eu tinha uns dois anos de idade alguns drogados pularam o muro da casa de minha vó, provavelmente atrás de alguma quinquilharia que pudessem roubar. Nesse inteirim, minha vó e minha tia, que era adolescente nessa época, chegaram em casa e deram um grito invocando pela polícia. Os elementos, assustados com o grito, não só não roubaram nada como deixaram o banheiro todo cagado e ainda deram uma facada nas costas de minha tia com uma faca de cozinha pequena. Felizmente, o golpe não foi muito profundo, e só teve que levar alguns pontos, além de minha vó ser obrigada a limpar a sujeira do banheiro.


Muitos anos depois, a casa de minha avó estava sendo reformada, e parte dos materiais de construção estavam empilhados na viela aonde ela e meu vô moram (a Vila Maria tem muitas vielas, em forma de grandes escadarias de concreto). Algum maconheiro escondeu sua droga enterrando o pacotinho num monte de areia. Quando ele retornou e não encontrou a droga, ele passou a atormentar meus avós, perguntando "onde é que estava o bagulho", muito embora meus avós não tivessem nada a ver com o assunto. O que eu sei da história é que o sujeito fez um escândalo tão grande que foi necessário chamar a polícia para contê-lo. Como ele já estava sendo procurado por outros crimes (ele estava preso no antigo Carandiru e não havia voltado da saidinha de fim de ano) ele acabou sendo conduzido de volta à prisão.


Ainda me lembro de um jovem rapaz muito maltratado que passava o dia estirado no meio da viela fumando maconha; eu não vi, mas todo mundo comentava já tê-lo visto diversas vezes se masturbando ali mesmo. Resumidamente, ele estava em uma sitação muito deplorável; acho até que ele tinha outros problemas que não apenas a droga, talvez alguma deficiência (pois nunca o vi pronunciar uma única palavra, e ele sempre parecia estar babando). Depois de um certo tempo, ele sumiu e não foi mais visto por ali. Uns diziam que ele tinha sido internado na Fundação Casa (nesse tempo ainda era FEBEM), outros diziam que ele tinha morrido esmagado por um caminhão enquanto dormia embaixo dele; o que sei é que de repente não mais o vimos.


Pois bem, eu me lembro que minha santa avozinha, católica às direitas e pessoa extremamente crédula, medrosa e cheia de ojeriza a quaisquer substâncias entorpecentes (como geralmente são as pessoas antigas do interior), me educou no medo destas e de outras figuras que eu não citei. Eu aprendi a ver os maconheiros como pessoas imprevisíveis e perigosas, que num surto de loucura podem avançar em cima de você para te agredir e/ou te roubar somente porque você está olhando pra elas; enfim, como pessoas que devemos evitar a qualquer custo. E pra piorar as coisas, eu fiz todo o ensino fundamental numa escola pertencente aos adventistas, conhecidos por sua rigidez e conservadorismo em matéria de comportamento, e por proporcionarem em seus estabelecimentos de ensino uma educação que isola os alunos da realidade exterior aos muros da escola.


Até que um dia eu aprendi (a duras penas, diga-se de passagem; Deus e os orixás são testemunhas do quanto eu sofri quando eu mudei de escola, era praticamente o "Boça"[aquele mesmo do "Hermes e Renato"] da escola. Só agora que os cabelos estão começando a me fugir da cabeça que eu estou começando realmente a aproveitar a vida!) que o mundo era muito maior do que meus livros, gibis da Turma da Mônica e coleção de selos, do que a casa de minha santa avó paterna e a Vila Maria, do que o Colégio Adventista de Vila Galvão e a Paróquia Nossa Senhora do Rosário (onde eu recebi a catequese), ou mesmo os cuidados de papai e mamãe...


Um belo dia, acabei caindo na real, conheci muita gente nos lugares onde estive e no meio dos que ocasionalmente passam por mim e trocam algumas palavras comigo, certamente há alguns que gostam de "dar um tapa na pantera", ou que passam mais tempo no bar do que na sala de aula; fui notando que geralmente (mas não sempre!) estes elementos estão entre os mais legais, bons de papo e mentes-abertas que eu conheco, e que geralmente (mas não sempre, lembrando de novo!) os abstêmios e temperantes (ou pelo menos os que posam como tais) estão entre os mais boçais e insuportáveis que passam por mim. Observei que o fato de alguém ser usuário de maconha não torna esse alguém necessariamente um sujeito perigoso ou um sujeito que vive vegetando num canto, onde está permanentemente com uma das mãos enfiadas na braguilha, a se masturbar. Enfim, aprendi a ver a realidade das coisas.


Pois bem, com um pouco mais de discernimento e maturidade nós passamos a ouvir os dois lados da história, notando que o ponto de vista hegemônico sobre algumas drogas ilícitas procura sufocar e desqualificar, por exemplo, o discurso em prol de uma regulamentação do uso recreacional e até mesmo religioso de algumas drogas. Pois a estas alturas já ficou bem claro que o teor e o nível do discurso dos que pregam a absoluta temperança já não se encontram em um nível que seja capaz de sustentá-lo inteiramente com argumentos ponderados e lógicos.


Exemplos disso são os acontecimentos envolvendo a(s) Marcha(s) da Maconha e a primeira versão da lei antifumo que está em vigor no estado de São Paulo, que ao proibir o consumo de tabaco em lugares fechados abertos ao público e dentro de templos religiosos abria uma brecha para que, contrariando o respeito às liturgias religiosas previsto na Constituição Federal, templos de umbanda pudessem ser invadidos pela autoridade policial e/ou judiciária, ter suas atividades paralisadas e/ou receber pesadas multas. Nesse caso, felizmente se abriu uma isenção na lei para este caso específico. E, ao contrário do que prega o senso comum, o povo não se deixa enganar indefinidamente, e nota que esse discurso patinado que infelizmente se tornou o discurso anti-drogas já está em pé de igualdade lógica com o discurso dos que defendem a liberação total.


Como nós sabemos, quando no enfrentamento de uma questão uma atitude é contrária à opção mais lógica para o enfrentamento desta, é porque existem interesses de peso que devem ser preservados (econômicos sobretudo; agências de publicidade que contratam com o governo, a indústria farmacêutica, ONGs que recebem repasse de dinheiro público, donos de clínicas particulares de recuperação, operadoras de planos de saúde... enfim, uma mina de ouro!) E para que os interesses de uma minoria se mantenham intactos e para que as pessoas permaneçam na ignorância disso, o discurso do outro é violentamente desqualificado e o debate é posto como uma atitude estúpida e tresloucada.


E para aumentar o paradoxo, temos como política oficial do governo a redução de danos, que por uma série de cuidados enfrenta a questão das drogas sem a necessidade que o viciado entre em abstinência imediata. Seja distribuindo seringas descartáveis ou canudos de silicone, o que se procura é fazer com que o consumo das substâncias seja o menos danoso possível, e não provoque danos correlatos como infecções, transmissão de DSTs, intoxicações causadas por elementos alheios à droga (alguma substância fumada em cotovelos de PVC poderia liberar substâncias venenosas vindas deste material) gestações indesejadas, acidentes automobilísticos etc. Na página da Associação Brasileira de Redutores de Danos: http://www.abordabrasil.org/ encontramos muitas dicas que podem ser seguidas pelos usuários das drogas mais populares, e o incrível é que todas as dicas sempre salientam a necessidade do uso de preservativos...


Enfim, o que temos por certeza é que muita gente já morreu e a questão ainda não está fechada, e não admite pontos de vista radicais. Ora, nós podemos muito bem fabricar cachaça em nossas residências para nosso consumo próprio, mas se nós vendemos nossa cachaça para todos os bares da cidade, as autoridades competentes quererão normatizar os processos produtivos, cuidar da higiene destes processos, e o mais importante: cobrar impostos sobre nossa produção. Se insistirmos em fabricar bebida na clandestinidade, sofreremos a repressão das autoridades.


Assim sendo, por que o consumo da maconha, por exemplo, não poderia ser alvo de política semelhante? Nós estamos nos privando de inúmeras oportunidades de prazer por que nesse clima atual não queremos ser surpreendidos pela polícia somente porque estamos fazendo uma "defumação" pra nosso relax, não queremos por causa disso termos que assinar um termo circunstanciado num DP qualquer que nos obrigue a nos apresentarmos mensalmente a um juiz criminal para dizermos que estamos cumprindo as penas alternativas que nos foram impostas, e ainda ficar com esse estigma estúpido no nosso atestado de antecedentes (o que nos impediria de assumir qualquer cargo no funcionalismo público, pois para a posse em um cargo público se exige a certidão negativa de antecedentes. Imagine que não podemos entrar no exercício de um cargo público em que nos esforçamos para passar nas provas só porque em nossos antecedentes consta que pagamos pena alternativa por posse de entorpecentes!). Essa história que eu contei é inventada, mas infelizmente pode acontecer com muita gente. Precisamos rever com urgência noissos conceitos e retomar com seriedade o debate sobre esta questão...