terça-feira, 24 de julho de 2012

Na Gira dos Exus - 1974




01. Gira Mundo; 02 Exu Tranca Rua da Encruza; 03. Exu da Porteira; 04. Ponto de Exu; 05. Exu das 7 Encruzilhadas; 06. Seu Tuniquinho Exu; 07. Exu Maria Padilha; 08. Pomba-Gira da Praia; 09. Pomba-Gira Cigana; 10. Segura o ponto; 11. Gira das Pomba-Giras; 12. Pomba-Gira na encruza de T.


Saudações a todos! Já faz tempo que eu estou a fim de resenhar esse disco; eu tentei fazê-lo umas duas ou três vezes, mas a inspiração vivia me fugindo e a canseira me abateu... Esse disco aí talvez seja o disco mais popular entre os umbandistas; quase todos têm ele em casa (seja em LP, fita cassete, CD ou MP3), e se não têm, com certeza conhecem a maioria (se não todos) os pontos deste disco e já o ouviram em algum lugar.... É o disco preferido que os terreiros botam pra tocar antes de uma gira de esquerda (pra dar uma ambiência ao lugar - pra quem não sabe, "gira" é o nome que se dá a todos os cultos públicos da umbanda, e uma gira de "esquerda" é um culto umbandista dedicado aos exus e pomba-giras), ou até no meio dela (caso os ogans/alabês/curimbeiros/atabaqueiros - médiuns que se dedicam exclusivamente a tocar os instrumentos musicais sagrados, como os atabaques - faltem aos trabalhos, ou até mesmo para que eles descansem por alguns instantes, enquanto os guias atendem o povo que a eles acorre -tocar atabaque por períodos prolongados de tempo é bastante cansativo, principalmente em dias de calor e principalmente se, como eu, você está aprendendo a tocar o instrumento).


Isso sem contar que os primeiros pontos de Exu e Pomba-Gira que eu aprendi, eu aprendi escutando este disco, que é todo composto de pontos de raiz (como comentei em postagem anterior, os pontos de "raiz" têm inspiração mediúnica direta das entidades sagradas, e estão ligados a todos os aspectos mágicos e esotéricos do culto) Mas, com certeza, o que mais chama atenção no disco é a sua capa, com um diabo de cara vermelha e sorridente surgindo no meio das chamas, tendo a seu lado um tridente, um gato e um galo pretos. Isso sem contar a Pomba-Gira que está do lado, uma bela e sorridente morena, trajando um vestidinho curto vermelho e ornada de jóias... Daí nos remetemos ao velho preconceito que associa a figura de Exu ao diabo, e a de Pomba-Gira à prostituição... Preconceito este que surgiu dentro do próprio seio da religião umbandista e do qual os evangélicos e demais pessoas leigas se servem para atacar a própria religião umbandista!


Antes de mais nada, vale dizer que este preconceito remete ao papel que os exus e as pomba-giras desempenham dentro da religião umbandista; estas entidades estão ligadas ao conhecimento e a guarda dos fundamentos mágicos mais profundos e obscuros do culto umbandista, atuando em áreas mais densas e sombrias do universo astral, onde o poder das demais entidades do panteão umbandista é limitado; em segundo lugar, os exus e pomba-giras, pela mesma razão que eu citei, estão ainda ligados à orientação e/ou solução de problemas relacionados a instâncias socialmente reprimidas da vida humana, como a sexualidade, a afetividade, a ambição material, etc; em terceiro lugar, o preconceito está ligado a postura destas entidades dentro do espaço de culto: não raro elas riem, dançam, bebem e fumam quase que desregradamente (e o médium não volta embriagado do estado de transe; o uso da bebida alcoólica e do fumo não é por vício, vale lembrar, mas está ligado à atuação mágica da entidade que faz uso deles; todas as entidades da umbanda, com exceção das crianças, fazem uso do tabaco e de alguma bebida alcoólica em seus trabalhos), usam de uma linguagem extremamente franca com os presentes no espaço de culto (não raro fazendo uso de palavras de baixo calão). Tudo isto em contraste com a postura rígida e austera de um caboclo, ou a postura passiva, serena e quase imóvel de um preto-velho no seu toco...


E em último lugar, vale dizer que a umbanda, democrática que é, abarca em seu panteão figuras sociais que pertencem a personagens (melhor seria dizer: arquétipos que remontam a figuras sociais) que ocuparam uma posição subalterna dentro da ordem social: o caboclo representa o ameríndio sugado pela colonização européia, o preto-velho representa o negro africano que sofreu com a escravidão, e Exu e Pomba-Gira representam a massa coletiva, tão exposta como fonte de perigo e sedição social, os marginais entre os marginais.... Muito do processo de legitimação da umbanda frente à sociedade passou pela depuração da imagem e do conceito das figuras sagradas de seu panteão, sobretudo a de Exu e de Pomba-Gira... Sobre esta questão, boto aqui alguns excertos do meu TCC, escrito e defendido no ano de 2010:


Tomemos como exemplo o caso dos arquétipos de Exu e Pomba-Gira. Estas entidades, frequentemente tomadas como malignas, sardônicas e amorais, certamente são as entidades mais polêmicas no meio umbandista (o processo de embranquecimento da umbanda passou pela demonização das figuras de Exu e da Pomba-Gira; apesar desta figura estar presente nos cultos públicos da maioria dos terreiros, ainda hoje podem ser encontrados terreiros que, embora possuam os assentamentos materiais de Exu e Pomba-Gira, não promovam cultos à estas entidades, ou que façam somente trabalhos fechados ao público leigo).


(...)Exu e Pomba-Gira foram de certa forma (injustamente) relegados à uma ordem marginal dentro do culto umbandista, por fazerem parte do grupos sociais que não se deixam dobrar pelos formalismos e convenções estabelecidas. E que, de certa forma, remontam à condição marginal da umbanda no cenário religioso e social brasileiro. Nos últimos anos, podemos dizer como que no esforço de “desestigmatizar” socialmente a religião umbandista, as figuras de Exu e Pomba-Gira foram um tanto elididas de seu caráter “subversivo” e foram investidas da mesma função mensageira e primaz do orixá Exu nos candomblés: a função de mensageiro entre os homens e as demais divindades, protetor das encruzilhadas e de guardião dos segredos do culto e das junções dos caminhos. E esta contradição obviamente está presente dentro da música umbandista. Senão, vejamos, nos seguintes fonogramas, essa contradição expressa de forma bem clara. Primeiramente nos debrucemos sobre “Galo Preto” a terceira faixa do LP Saravá Seu Zé Pilintra, da cantora Genimar:


Refrão, repetido duas vezes: Meu galo preto/Do pé amarelo/Canta,meu galo/Só faz o que eu quero/
1ª estrofe: No pingo da meia-noite/Meu galo preto cantou/Ele veio tirar despacho/Que você pra mim botou/(Refrão)
2ª estrofe: Na direita tenho Deus/Porque nele tenho fé/Na esquerda tenho meu galo/Que desmancha tudo com o pé/(refrão)


Como podemos notar, esta faixa, principalmente em seus dois últimos versos, cita o caráter maligno e perigoso de Exu, ao colocar Deus na direita e o “galo preto” na esquerda (no senso comum, trabalhar “na esquerda”, mais do que apenas promover um culto dedicado aos exus e pomba-giras, significa trabalhar com a intenção de provocar “o mal” a outrem). E, como exemplo de transição entre duas visões que os umbandistas tem das entidades da “esquerda”, temos a décima faixa (quarta do lado B) do já citado LP de Sylvano Alves, “Pomba Gira”:


Refrão, repetido duas vezes: Em cada esquina ela está/Olhando você/Pra o que há de mal jamais/Lhe acontecer/
Estrofe única: Tomando champanhe/Fumando cigarro/Ela chega aqui/Vem lhe consultar/E começa a falar/O que vai seguir/Ela tem consigo/Um peito amigo/Pra ajudar você/O que ela falar/Preste atenção/Pra não esquecer/As explicações/De preparações/Pra lhe ajudar/Mas se não ligar/Começa a apanhar/E sem perceber/Ela falou, você criticou/E se vier sofrer/É a Pomba-Gira/Veio observando e começou a bater/(Refrão)


Como podemos notar, a partir desta música, Pomba-Gira pode muito bem ajudar os que a procuram, e sempre estará vigilante com os seus protegidos, mas nunca iria perdoar uma desfeita (uma promessa não paga, por exemplo). Por fim, embora os trabalhos de Seu Sete da Lira sejam considerados trabalhos da quimbanda (ramo religioso afro-brasileiro inteiramente baseado no culto dos exus e das pomba-giras, com certas influências da cabala e da “magia negra” européia), podemos notar em uma das duas claras referências feitas à esta entidade no LP A Brasileiríssima Cacilda de Assis Interpretada por Jorge Ogan, mais precisamente na segunda faixa deste LP, “Assim não dá”; nesta faixa, Seu Sete da Lira é posto como uma entidade que, apesar de ser exu, trabalha somente para o bem:


Refrão, repetido duas vezes: Assim não dá, lelê/Assim não dá/Você bebe pra esquecer/Também bebe pra lembrar/Assim não dá, lelê/Assim não dá/O Seu Sete, Rei da Lira/Só bebe pra trabalhar/
Estrofe única, repetida duas vezes: Onde está Seu Sete?/Tá no canavial/Está trabalhando/Pra nos livrar do mal(refrão)


Nesta música, Seu Sete da Lira bebe (dizem que quando ele estava incorporado em D. Cacilda, sua médium, ele bebia garrafas e mais garrafas de cachaça pura, sem que D. Cacilda voltasse embriagada do estado de transe) não por ser um exu ou um espírito menos evoluído: ele bebe para, em seus trabalhos, “nos livrar do mal”; por esta razão, acreditamos que esta música tenta mostrar a entidade Exu livre de seu caráter “subversivo”, associando-a à “prática do bem caritativo”.


Pois bem, deixando de lado as polêmicas, esse disco é bonzinho, sem ser genial... O bando que gravou esse disco gravou ainda outros, dedicados aos pretos-velhos, as crianças, a Iansã e a Oxum, sob o nome "Na gira de/dos". Enfim, tem o mérito de ser um bom disco para conhecimento dos leigos em música umbandista e é um disco bem legal para se presentear evangélicos (e vê-los escandalizados soltando esconjuros por isso). Todas as obras que foram citadas nos trechos do meu TCC já foram resenhadas aqui neste blog e estão disponíveis para download no blog "Discos de Umbanda" (vá na minha lista de blogs favoritos, seu preguiçoso!) ... E agora me dêem licenca que vou tomar a minha dose diária de Diazepan, junto um gole de chá de fita!


Para ouvir a faixa 12, "Pomba-Gira na Encruza de T", é só dar o play nesse vídeo aí embaixo:

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